Imagem do Sagrado Coração de Jesus ficou totalmente destruída após ser atirada ao chão
Imagem do Sagrado Coração de Jesus ficou totalmente destruída após ser atirada ao chão | Foto: Gina Mardones



Os fragmentos da imagem do Padroeiro de Londrina espalhados pelo chão da Catedral Metropolitana de Londrina chocaram a cidade na última quarta-feira (3). Um homem foi preso e liberado em seguida após invadir a igreja e atirar a imagem ao chão. O fato, que apresenta fortes indícios de intolerância religiosa, é recorrente e faz parte da realidade de diversas denominações e formas de manifestação de fé. Neste domingo (7) é celebrado no Brasil o Dia da Liberdade de Cultos, enquanto que o dia 21 de janeiro marca o Combate à Intolerância Religiosa. Para discutir esta temática e apontar caminhos para uma sociedade mais respeitosa, a FOLHA ouviu representantes e lideranças de cinco religiões presentes no município.

Para parte dos entrevistados, estamos presenciando um aumento da intolerância religiosa no País e, consequente, em Londrina. "São violências corporais, com depredações de espaços sagrados e até mesmo atos de preconceito, como não ser atendido no hospital por estar com um fio no pescoço, não ter emprego pela crença ou ser discriminado na escola", relata Robson Borges Arantes, ogan (dirigente no candomblé) e presidente da Associação de Ogans de Londrina. Segundo ele, existem cerca de 450 terreiros espalhados pela cidade e muitos já foram violados por preconceito.

Segundo ogan Robson Arantes, Londrina tem 450 terreiros e muitos já foram atacados
Segundo ogan Robson Arantes, Londrina tem 450 terreiros e muitos já foram atacados | Foto: Ricardo Chicarelli



Dados do Disque 100, departamento de ouvidoria nacional do Ministério de Direitos Humanos, mostram que as denúncias de discriminação religiosa cresceram 4.960% entre 2011 e 2016. Somente no primeiro semestre de 2017 foram 169, sendo um no Paraná. Destes, 66 eram relacionados a religiões de matrizes africanas, umbanda e candomblé. Entre janeiro e dezembro de 2016 aconteceram 14 registros no Estado de crimes que faltaram com respeito as religiões.

Vanderlei Frari, diretor acadêmico do ISBL (Instituto e Seminário Bíblico de Londrina) e secretário do Conselho de Pastores Evangélicos, acredita que as situações concretas de intolerância são esparsas, levando em conta o universo religioso brasileiro. "Por outro lado percebo um recrudescimento de fundamentalismos religiosos. Trata-se de algo que não se consuma em atos discriminatórios ou violentos, mas que impede o indivíduo de lidar com a alteridade", aponta. "Sociedade justa é aquela em que as pessoas possuem liberdade de se expressar", destaca o sheik Yamani Nourmade, uma das principais lideranças do islamismo em Londrina.

Sheik Yamani Nourmade diz que sociedade justa é aquela em que há liberdade de expressão
Sheik Yamani Nourmade diz que sociedade justa é aquela em que há liberdade de expressão | Foto: Marcos Zanutto



REDES SOCIAIS
Por ser um ambiente que pode oferecer a ideia de impunidade, as redes sociais funcionam como uma ferramenta de disseminação facilitada do preconceito. "Sabemos que se for falado algo bom de uma religião aquilo 'morre'. Já se existe o ataque, gera tensão e as pessoas têm tendência a explorar isso, falando o que querem", lamenta a presidente da União Regional Espírita de Londrina, que reúne seis municípios, Maria Aparecida Leite dos Santos.

Professor de teologia na PUC (Pontifícia Universidade Católica) e membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Londrina, Frei Ildo Perondi, afirma que a anulação do outro pode gerar outros problemas. "Quem é capaz de destruir uma imagem pode fazer atos piores e com pessoas, em especial com grupos minoritários", acredita. "Quando não existe liberdade a fé vai sendo oprimida. As redes sociais ressuscitaram a intolerância não velada", diz Arantes.

Imagem ilustrativa da imagem LIBERDADE DE CULTO - Por uma sociedade de paz



FANATISMO
No contexto da intolerância também é possível encontrar condições que remetem ao fanatismo. No ano passado, mães de santo foram obrigadas por traficantes a destruir os próprios terreiros no Rio de Janeiro. Frari elenca que a descriminação extrema de uma religião se configura por visões equivocadas. "Outros fatores podem cooperar para atitudes intolerantes, como neuroses desenvolvidas em contextos religiosos obtusos e rígidos, interpretações literalistas que transformam os escritos sagrados em instrumentos de dominação, visões de mundo pautadas por dualismos e insegurança quanto à própria fé."

De acordo com as lideranças, a discriminação e o preconceito são gerados por outros fatores, que estão acima da crença. "O mundo está mais intolerante, com políticos, dentro e fora do Brasil, com este perfil. Assim, essa causa interfere com as questões morais, pois as atitudes são frutos de pregações, que podem incitar ou não", exemplifica Perondi, que já coordenou a produção de um livro sobre o tema tolerância e intolerância religiosa.

PAPEL DA IGREJA
Nourmade chama atenção para o papel da igreja e do líder, que são essenciais para não postergar a ideia de que o diferente é ruim. "Quando existe a intolerância, é porque seguiu o ego e o instinto. Não tem doutrina no mundo que pregue o desrespeito", defende. Ele também considera que a busca pelo poder pode se travestir de religião. "Não se vê, por exemplo, tensão entre xiitas e sunitas, mas sim interesses pessoais que se misturam. No Brasil mesmo, estes povos vivem muito bem", compara.

Os religiosos entendem que o exemplo dentro do ambiente religioso sobre aceitação e o respeito em relação a outras denominações fomenta a reflexão. "A postura do líder religioso é fundamental e muito importante diante dos indivíduos. Ele precisa despertar o amor, a bondade, a paz e a caridade para que possamos ter mais aproximação como sociedade", relata a presidente da União Regional Espírita de Londrina.

ESTADO LAICO
A Constituição prescreve que o Brasil é laico e como essa garantia se pressupõe que o Estado deve preocupar-se em proporcionar aos cidadãos um ambiente de compreensão religiosa. Para o Robson Borges Arantes, porém, este fato não é consumado no dia a dia. "Não temos o direito de ver o nosso sagrado se manifestando em nós e nos espaços, pois isso é oprimido. Somos obrigados a rezar a oração de uma religião na sessão da Câmara ou aceitar crucifixos em repartições públicas. É impossível pensar um Estado ecumênico se ele, por si só, favorece uma crença apenas", considera.

Numa discussão que gerou muita polêmica, o STF (Supremo Tribunal Federal) definiu que o ensino religioso em escolas públicas pode ter caráter confessional, ou seja, que as aulas podem seguir os ensinamentos de uma religião específica. Para alguns religiosos, a falta de um debate com crianças e adolescentes prejudica o entendimento da pluralidade. "Deveriam falar no geral, como o que significa o cristianismo como um todo, por exemplo. Todos temos crenças diferentes, por isso era necessário explorar mais sobre o respeito com cada seguimento e deixar que conheça as especificidades", indica Maria Aparecida Leite dos Santos.

Robson Borges Arantes lembra que o Dia de Combate à Intolerância Religiosa foi criado para rememorar o falecimento de Iyalorixá Mãe Gilda, da Bahia, vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. Acusada de charlatanismo, teve sua casa atacada. "Ainda temos o caso de Yá Mukumby (assassinada em 2013), que remete ao racismo e intolerância. Quando não se possibilita aprender outras crenças, tira da educação o papel de continuar a diversidade religiosa do nosso País."

CAMINHO PARA TOLERÂNCIA
Entre as atitudes e passos para uma sociedade mais tolerante está a consciência. "É preciso valorizar o que é diferente, porque ele não é contrário, mas o que nos ajuda a ver outras questões do próprio Deus. As atividades de ecumenismo, como temos a semana de oração pela unidade dos cristãos, é algo positivo e que deve ser contínuo", frisa o Frei Ildo Perondi. "A fé é completa quando se cumpre as ordens de respeitar o ambiente que vivemos", complementa o sheik.

"Os caminhos são difíceis de discernir. Momentaneamente, o diálogo inter-religioso, apesar de parecer utópico, pode cooperar para uma maior tolerância. Por meio do encontro com o outro, na condição de ser humano semelhante, as visões demonizadas podem se desfazer e permitir afetos mais positivos. No mínimo, a compaixão deveria prevalecer sobre as convicções doutrinárias e teológicas", finaliza Vanderlei Frari, que é bacharel em teologia e mestre em ciências sociais.

Proprietário de uma loja de artigos religiosos na rua Sergipe, João Batista teve uma das imagens destruídas em 2013
Proprietário de uma loja de artigos religiosos na rua Sergipe, João Batista teve uma das imagens destruídas em 2013 | Foto: Saulo Ohara



Restauração minuciosa dá vida nova às imagens
O artesão Alexandre Achiropita restaura imagens danificadas pelo tempo e por atos de vandalismo. Uma das mais trabalhosas foi a Nossa Senhora das Graças que foi alvo de dois ataques em uma praça do Jardim Castelo, zona leste da cidade. Em 2015, a imagem teve as mãos serradas e a cabeça destruída. "Demorou uns cinco meses para ficar pronto por problemas de logística", explicou. A cabeça da santa foi quebrada em 28 pedaços. Após restaurada, a imagem foi levada para uma capela da região e outra Nossa Senhora das Graças foi colocada na praça.

O mais recente trabalho do artesão foi a restauração de quatro estátuas colocadas na praça central do Cemitério São Pedro, centro de Londrina. O Santo Antônio, a Santa Terezinha e duas imagens do Sagrado Coração de Jesus ganharam vida nova após algumas semanas.

O trabalho é feito de forma voluntária para comunidades religiosas. "Conserto, arrumo e reformo desde 2000. Faço trabalho também para pessoas em particular. Já reformei budas, imagens indianas, santos chineses, hindus, ciganos... Nunca tive preconceito contra nenhuma religião. Faço esse trabalho de coração", declarou.

Achiropita também foi o responsável pela reforma de imagens utilizadas em rituais umbanda. Em 2013, o Pai João e a Mãe Maria feitos há mais de 30 anos foram apedrejados em frente a uma loja de artigos religiosos, no centro de Londrina. O local comercializa itens ligados às religiões umbanda e católica e nunca havia sido alvo de atentados. "A cabeça do Pai João foi quebrada em 50, 60 pedaços. Reconstruí e pintei novamente. O pescoço foi feito por outra pessoa", contou.

Clientes das duas religiões sempre frequentaram a loja com tranquilidade e respeito. Para João Batista, proprietário do estabelecimento, o ato foi um episódio isolado. "O rapaz que apedrejou tinha alguma doença. No geral, existe respeito. A loja tem quase 50 anos. Acho que religião, futebol e política, a gente não devia discutir", comentou Batista.

Em Santa Cecília do Pavão, no Norte Pioneiro, fiéis católicos aguardam ansiosos a restauração de mais de 15 estátuas danificadas pelo mesmo autor do vandalismo na Catedral de Londrina. Um fiel do Norte Pioneiro, que preferiu não se identificar, ressaltou que as imagens possuem também valor histórico, já que a maioria possui mais de 50 anos. "Na hora a gente se comoveu bastante. Não sabemos o que leva uma pessoa a cometer um ato de revolta dessa forma. Aqui a comunidade não atribui esse fato à intolerância religiosa, mas a um distúrbio mental desse rapaz", avaliou. As celebrações estão ocorrendo normalmente, mesmo com os espaços vazios antes ocupados pelas estátuas. O que sobrou das imagens foi encaminhado para um voluntário de Londrina que se dedica à restauração. Não há previsão para a conclusão dos trabalhos.

Alexandre Achiropita com uma das estátuas religiosas restauradas por ele no Cemitério São Pedro, em Londrina
Alexandre Achiropita com uma das estátuas religiosas restauradas por ele no Cemitério São Pedro, em Londrina | Foto: Saulo Ohara



Diálogo para o entendimento
No próximo dia 20 de janeiro será realizado na Concha Acústica, no centro de Londrina, das 8h às 10h, a terceira edição do Manifesto pela Paz e pela Tolerância Religiosa, proposta do Ministério da Justiça e Cidadania, que acontece em várias localidades do Brasil. O evento conta com representantes de diversas denominações religiosas e busca evidenciar a diversidade de crenças existentes e a importância de respeitá-las.

"Existe uma série de pensamentos, visões e religiosidades. Todas, porém, se preocupam com a construção da paz e da harmonia. Este encontro é uma maneira de fomentar isso, pois para muitas pessoas o respeito é um paradoxo, já que elas entendem apenas a verdade delas e levam a radicalização de uma interpretação", ressalta Luis Claudio Galhardi, coordenador do movimento Londrina Pazeando e do Conselho Municipal de Cultura de Paz. São esperados líderes de pelo menos 15 religiões, que explanarão como cada um manifesta sua fé.

Além do evento, que é anual, a cidade também conta com o Grupo de Diálogo Inter-Religioso, que reúne 33 denominações religiosas e instituições apoiadoras. Existente há quase três anos, o coletivo debate problemas da sociedade e como cada religiões as entende, fazendo uma aproximação entre as dezenas de manifestações de fé exercidas em Londrina. "A proposta é não discutir doutrinas ou divergências, mas buscar um entendimento por meio do diálogo entre as igrejas. É uma maneira de derrubar esteriótipos e fazer com que a intolerância possa diminuir", pontua.

Os encontros são bimestrais e acontecem na Associação Médica. A primeira assembleia de 2018 está programada para a terceira terça-feira de fevereiro. Segundo Galhardi, a cultura de paz precisa ser difundida em todos os ambientes, no intuito de quebrar paradigmas de preconceito e falta de respeito. "A doutrina não pode se transformar em um motivo para agredir o outro verbalmente, psicologicamente e fisicamente. Neste sentido a união das religiões para um pensamento único pode ser um diferencial em um ambiente hostil." (P.M.)

Liberdade religiosa é garantida pela Constituição
A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo quinto, garante que "é inviolável a liberdade de consciência religiosa e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida a proteção aos locais de culto e suas liturgias". Para reforçar este caráter plural e livre que forma a Nação, o Código Penal traz sanções em seu artigo 208 o "escarnecer alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou pratica de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso."

De acordo com a coordenadora da Comissão da Promoção da Igualdade Racial e Minorias da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), subseção Londrina, Janaine Ventura Salviano, a pena para quem pratica a intolerância religiosa varia de um mês a um ano ou multa. "Se houver o emprego da violência a pena aumenta um terço. Isso também acontece quando há publicação na internet ou meio de comunicação. Essa expansão acontece pois a vítima é muito mais exposta", explica.

Para ela, a legislação brasileira é suficientemente combativa em relação a crimes de ódio contra religiões. O que falta, acredita, é uma conscientização, que abrange a população, autoridades policiais e poder público. "O crime de preconceito e segregação, embora seja inaceitável e grave, é algo que as pessoas acreditam que não vigoram suas sanções. Muitas vezes não existe até mesmo o preparo para tipificar o agente agressor e fatos assim acabam prejudicando o combate à intolerância."

A advogada ainda alerta que é preciso denunciar casos de discriminação religiosa, seja diretamente a um órgão policial ou no Disque 100. "Quem sofre ou presencia práticas de ofensas, de qualquer forma e independente do meio, precisa procurar ajuda e levar a situação adiante. Somente assim é que se consegue ter embasamento para novas ações e para gerar políticas públicas", recomenda. "Não adianta leis rígidas se não existe o entendimento que a liberdade religiosa é um direito fundamental de todo o cidadão", acrescenta. (P.M.)

Viviani Costa
Reportagem Local