Imagem ilustrativa da imagem Identificando um vocabulário pé-vermelho



"Comprei uma data para construir uma casa, porque a que eu moro está bem velhinha, com o carpê todo desgastado. A dependência já estava toda detonada e não tinha espaço nem para as visitas pousarem por lá. Quando caía aquele toró, relava na parede e ela estava toda úmida. E era uma casa que não ornava comigo. Quando eu ficava apurado e ia ao banheiro, via aquela patente azul calcinha e achava aquilo o ó. Tinha dia que vinha uma renca lá em casa e eu sentia vergonha. Dava vontade de sentar no meio-fio e chorar".

Quem é de Londrina não tem dificuldades de entender essas palavras, mas quem é de fora e não está habituado com esse vocabulário, pode encontrar dificuldades de compreender algumas dessas frases. Traduzindo para quem é de fora: "A pessoa comprou um terreno para construir uma casa, porque a casa em que morava estava bem velha, com o carpete desgastado. A edícula já estava toda deteriorada e não tinha espaço nem para as visitas pernoitarem por lá. Quando caía aquele temporal, ele tocava na parede e ela estava toda úmida. E era uma casa que não combinava com ele. Quando ficava com vontade de ir ao banheiro, via aquele vaso sanitário azul claro e achava aquilo horrível. Tinha dia que um grupo grande de amigos ia lá na casa dele e ele sentia vergonha e ficava com vontade de sentar na guia da calçada e chorar."

A professora Verna Picanço, 55, veio de Belém (PA) e achou tudo muito diferente. "Às vezes a gente não entende o que os londrinenses falam. Até hoje não sei o que é isso. Quando você falam arriar a bateria também é diferente. Lá em Belém a bateria descarrega. Chamar privada de vaso sanitário eu também nunca tinha escutado até vir para cá. Isso sem falar do erre daqui, que é muito enrolado. É tudo muito diferente", revela.

A estudante Júlia Boechat Fonseca, 25, é de Londrina, mas residiu por muitos anos em São Paulo e sentiu a diferença de vocabulário. "Sinaleiro é uma coisa que eles não usam, geralmente eles falam farol. Eles chamam o corretivo líquido de branquinho e eu costumo falar o nome comercial de um produto", destaca.

Essa maneira peculiar de falar pode causar estranheza para quem não é daqui. Tanto que as duas publicações com o maior número de visualizações feitas pelo gestor de mídias sociais da Prefeitura Municipal de Londrina, Ulisses Sawczuk, são relacionadas à maneira como o londrinense fala. Sawczuk revela que a ideia de publicar isso surgiu quando conversava com um amigo sobre a palavra ramona, como sinônimo de grampo para prender o cabelo.

"A primeira vez que escutei a palavra achei engraçado, pois era um objeto com nome de mulher. Aquilo ficou na cabeça, porque quando escutei pela primeira vez achei que era uma espanhola", relembra. Na realidade o que aconteceu foi que os londrinenses adotaram uma metonímia, ou seja, chamam o objeto pelo nome comercial do produto. Isso aconteceu também para a água sanitária, que aqui é conhecida como Q-boa, com o corretivo líquido, conhecido por aqui como Error-ex, ou com a palavra patente, que era o que vinha escrito no vaso sanitário indicando que o produto era patenteado.

Sawczuk relata que não chegou a fazer uma pesquisa científica sobre a origem das palavras. "Foi somente uma pesquisa empírica sobre qual vocabulário era empregado na região, com termos usados no dia a dia. Acabei não pesquisando em profundidade e não entrei na origem delas", explica.

Nascido em Londrina, Sawczuk relata que já aconteceu dele mencionar a palavra meio-fio e a pessoa com quem estava conversando não entender. "Achei interessante", aponta. Ele afirma que, independentemente das palavras terem sido criadas em Londrina ou não, o objetivo foi colocar o que está cristalizado aqui. "Muitas dessas palavras são usadas em outras cidades do Norte do Paraná e não são expressões exclusivas nossas. É muito difícil encontrar palavras que foram criadas e são usadas só em Londrina, porque a cidade é nova e a maneira como a gente fala ainda está em formação. Mas isto não diminui o fato de que esse 'dialeto' é usado por aqui, pois o fato de irmos a outras regiões do Brasil e perceber que muitas palavras que usamos não são compreendidas indica que essa maneira de falar é muito nossa", argumenta.

"As palavras viajam com as pessoas", destaca a professora Vanderci Aguilera
"As palavras viajam com as pessoas", destaca a professora Vanderci Aguilera | Foto: Ricardo Chicarelli/24-11-2015



'Não existem palavras faladas só em Londrina'
A pioneira na realização de um estudo sobre como o londrinense fala é a professora de letras da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Vanderci Aguilera, que escreveu a tese "Aspectos linguísticos da fala londrinense: Esboço de um Atlas linguístico de Londrina".

De acordo com a pesquisadora, é muito difícil afirmar o que é falado só em Londrina e o que não é falado fora daqui. "É uma questão de regionalismo e eles ainda não foram todos estudados no Brasil. Dizer que existem palavras que só se ouvem em Londrina, isso não existe. As palavras viajam com as pessoas", destaca.

Ela exemplifica com o verbo relar, muito usual na cidade. "É um verbo antigo e vem do verbo ralar. Tomou o significado de encostar. Quando a pessoa diz 'não rele em mim', quer dizer 'não encoste em mim'. Se um carioca vem para cá e escuta alguém falando dessa maneira, acha estranho e pode achar que existe só aqui. Mas já está no português antigo e veio para cá provavelmente com mineiros e paulistas do interior", explica.

Sobre a palavra data, para designar terreno, a professora aposentada da UEL, Halha Saridakis, defende a tese de que a palavra tenha sido introduzida pelo engenheiro agrimensor russo Alexandre Rasgulaef, porque era a palavra que ele utilizava na Rússia para designar porções de terra com aquelas dimensões. No entanto, Aguilera refuta essa tese. "Essa palavra já está no português antigo. Em Minas Gerais, os primeiros garimpeiros e mineradores ganhavam uma data, que era porção de terra doada. Essa palavra vem do latim donata. Tenho documentos que comprovam que a palavra é usada desde 1700, mas a palavra deve ser muito mais antiga que isso", aponta.

Outra palavra bastante comum no vocabulário de quem vive em Londrina é ornar no sentido de combinar. "Eu tenho uma amiga veio do Pará e diz que acha horrível usar a palavra ornar. Mas é uma herança. Meus pais e avós falavam assim", relembra. Ela vem do latim ornare, "adorno, enfeite, complementação", da mesma raiz de ordo, significando "ordem".

Ela diz ainda que a palavra patente para se referir ao vaso sanitário surgiu de uma metonímia, já que a caixa em que vinha a louça do vaso sanitário continha os dizeres "marca patente". Ela acrescenta que a palavra patente com esse sentido não é exclusiva daqui. "Ela é utilizada também em algumas cidades do Rio Grande do Sul, no interior de Santa Catarina e de São Paulo", aponta. Por este motivo, ela argumenta que a tese de que os dizeres dessas caixas não eram em inglês e que não houve influência da Companhia de Terras do Norte do Paraná. Os dizeres mais comuns encontrados nas caixas dos vasos sanitários ingleses da época com esse sentido eram as palavras "Registered trademark".

Sobre a palavra bigato, para se referir a um verme, ela relata que a palavra não está no dicionário português Aurélio ou no Caldas Aulete. "Descobri que a palavra vem do italiano e veio para cá com a imigração deste povo para cá", aponta Aguilera. Segundo o portal "Treccani, La Cultura Italiana" a palavra provém do italiano setentrional e se refere ao bicho da seda, vermes de frutas ou qualquer lagarta de borboleta. Como a região teve colonização italiana forte, a palavra acabou sendo difundida na região.

Sobre o erre caipira típico da região, o chamado erre retroflexo, ela revela que teve origem em São Vicente (SP). "Quando os portugueses chegaram aqui, os indígenas não sabiam falar o L, R e o F. Ao pronunciar sol, falavam sor. O cruzamento do português e a língua indígena acabou se expandindo pelo País por intermédio dos Bandeirantes, diferente do R velar ou glotal de origem francesa utilizado no Rio de Janeiro, que foi adotado em função do prestígio que a família real possuía na época que veio ao Brasil.(V.O.)