Imagem ilustrativa da imagem “Se você imagina que o compliance é caro, imagine o não compliance”
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Enquanto nos Estados Unidos o conceito é amplamente conhecido, no Brasil ainda há campo para o desenvolvimento de pesquisas e ações que facilitem a efetivação de sua razão de ser no interior das organizações. O compliance consiste na criação de normas e medidas que tornem organizações do setor público e privado, além de empresas de qualquer setor, blindadas de desvios ou atos de corrupção sem perderem sua competitividade e capazes de darem respostas rápidas em caso de "imprevistos".

Entretanto, enquanto muitos defendem a aplicação ampla de regras básicas, especialmente no setor público, críticas sobre uma suposta ineficiência ao não se considerar particularidades sempre levantaram discussões sobre o tema. Há um consenso quando o assunto é compliance de que não é possível aplicar a regra "one size fits all", ou seja, de que um método serviria para todos, em analogia livre.

Após sete anos desde a publicação da lei que ficou conhecida como Anticorrupção, ou Lei da Empresa Limpa, seguida de um boom na “indústria do compliance” no Brasil, ainda há muito o que se desenvolver, “especialmente em entidades do terceiro setor”, alerta o docente do Programa de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Positivo, doutor em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo), Fernando Borges Mânica.

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Para ele, um dos principais desafios para a implementação de boas práticas e a efetivação de uma mudança de cultura em busca de zerar as chances de cometimento de atos de corrupção, princípios dos programas de compliance, é a pouca atenção dada por gestores às atividades meio. Mânica, porém, reconhece que a barreira vem acompanhada das dificuldades financeiras historicamente enfrentadas pelas entidades do terceiro setor. Pós-graduado em Terceiro Setor pela Escola de Administração pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) de São Paulo, Mânica vem buscando jogar luz sobre o tema também fora da sala de aula. Em artigo científico publicado na Revista de Direito Público da Economia, propõe uma sistematização das parcerias entre entidades do terceiro setor e o poder público.

Qual é o grande desafio de aprimorar as regras de compliance em uma organização sem acabar prejudicando sua proposta de desenvolvimento econômico, de prestação de serviço e até na geração de empregos?

A maior parte das entidades do terceiro setor, especialmente, depende do apoio e incentivo público estatal para a realização de suas atividades. Grande parte delas tem dificuldades financeiras para dar conta de atender a sociedade com as suas atividades sociais. Muitas vezes são mantidas por pessoas que têm aquela vocação para o desenvolvimento da atividade finalística, mas acabam descuidando ou não dando a devida atenção para o desenvolvimento das atividades meio. E os programas de compliance são uma atividade meio que visam justamente fazer com que todos os recursos sejam gerenciados da melhor forma possível. E também que não haja qualquer tipo de desvio ou mesmo prática de atos de corrupção. Então, em primeiro lugar, a um problema é a falta de recursos, porque instituir um programa de compliance gera custos. Em segundo lugar, outra dificuldade, é a dedicação muito voltada à atividade fim e não para a atividade meio, que também deve ser objeto de grande atenção.

Um custo que pode ser alto, mas que evita outros ainda maiores.

Essa é a visão ou esse é o raciocínio que os integrantes de pequenas empresas e entidades do terceiro setor devem ter. As pessoas que trabalham com compliance costumam dizer isso. Se você imagina que o compliance é caro, tente o não compliance. Porque a inexistência de um programa que evite atos desviantes no momento em que esses atos ocorrem geram danos muito mais severos à imagem, à reputação, mesmo danos financeiros diretos, do que o próprio custo da existência de um programa de compliance.

Como garantir que empresas não sejam destruídas pelas ações de poucos funcionários?

Uma das preocupações da própria lei anticorrupção, da própria racionalidade, é que se consiga punir os responsáveis e mesmo punir a empresa por ter deixado que determinadas pessoas realizassem determinados atos, mas garantir a continuidade da empresa. Porque a empresa, ainda que tenha a finalidade de gerar lucro, ela tem um impacto social e uma importância social bastante grandes. Agora, a partir do momento em que uma empresa possui um programa de compliance efetivo, ela terá condições ou de evitar a prática de atos lesivos ou, então, caso esses atos venham a acontecer, ela terá condições de, muito rapidamente, detectar, segregar esse ato e expor ou dar uma satisfação à sociedade sobre quem efetivamente praticou e quais serão penalidades internas aplicadas pela própria empresa para essas pessoas físicas. Pois, no fim do dia, quem pratica as ações são pessoas físicas. Então neste ponto, o programa de compliance funciona também como uma forma de dar uma resposta à sociedade sobre o que efetivamente aconteceu e quais foram as providências.

Nesse caso existem as práticas de blindagem patrimonial que tanto podem favorecer a criação de camadas de proteção como podem acabar sendo usadas de má fé?

A questão de adoção de mecanismo de proteção ou blindagem existe, mas tem um efeito muito restrito porque, atualmente, os órgãos de controle, o próprio Poder Judiciário, tem desconsiderado a existência de pessoas jurídicas criadas com o objetivo de afastar determinado patrimônio daquela pessoa física que eventualmente realizou um ato ilícito. Então o caminho do compliance passa muito mais por ter uma série de sistemas, mecanismos, pessoas e estruturas voltados a evitar que haja a prática de um ato lesivo do que criar mecanismos para afastar determinado patrimônio do seu real proprietário que eventualmente venha a ser acusado pela prática de um ato lesivo à administração pública. Então sim, é possível que exista tentativa daquilo que se chama blindagem patrimonial, mas esse tipo de estratégia tem sido inócua quando efetivamente atos lesivos ocorrem porque os órgãos de controle têm ido atrás e alcançado esses bens para fazerem frente a eventual prejuízo que a pessoa tenha causado à administração pública.

No âmbito dos municípios, quais são as medidas indispensáveis?

Bom, o estado do Paraná instaurou no início do ano passado, através de decreto, o Programa Paranaense de Integridade de Compliance e ele tem trazido uma série de resultados, ainda que no início, porque uma das características do programa de compliance é a mudança de cultura. A partir do momento em que você inicia na administração pública um sistema de avaliação de riscos, em relação a cada órgão, cada agente público verifica qual é o impacto e decide se vai dar um determinado tratamento com vistas à mitigação desses riscos. Outro exemplo é o reforço de mecanismos que chamamos de canal de denúncias, para incentivar que as pessoas denunciem, mesmo de modo sigiloso, eventuais irregularidades, desvios, por menores que sejam. Então por meio de urnas, contato telefônico ou internet, a ideia não é criar um cenário de pânico em que todos denunciem a todos, mas um cenário de fortalecimento, confiança, em que cada agente público tenha a certeza que está fazendo o melhor e que nada em sua volta está funcionando de modo inadequado.

A presença do presidente de uma empresa no conselho administrativo impede uma maior transparência e independência?

Existe um vínculo muito próximo entre os programas de compliance e as regras de boa governança, que são a definição e a especificação de autonomia dos órgãos de direção, de liderança e decisórios de cada organização. O que a governança corporativa exige é que haja condições de comunicação, de liderança e fluidez de informações e controle entre cada uma das instâncias. Portanto, é interessante que não haja sobreposição entre responsáveis ou detentores do capital com encarregados de gerenciamento do capital. Este é o conhecido conflito de agência, em que muitas vezes a diretoria de uma empresa toma decisões que beneficiam muito mais a eles mesmos do que a própria empresa como um todo, do que o futuro dessa empresa e, em última instância, do que os acionistas. Essa separação deve existir. Porém, outra observação, é que não existe uma receita única de formatação para esse sistema. É necessário que se analise, verifique o histórico, o contexto e a área econômica em que atuam para então se definir da melhor forma qual deve ser o modelo de inter-relação de cada um dos seus órgãos internos.

Em 1º de outubro, entrou em vigor uma circular do Banco Central que define procedimentos de controle a serem adotados por bancos e instituições financeiras para prevenir crimes como lavagem de dinheiro. Qual é a sua avaliação sobre essa medida?

Eu vejo com bons olhos a intervenção do Banco Central nesta área porque a atividade bancária em si é de altíssimo risco. Porque ela envolve, naturalmente, valores em dinheiro e pode ser instrumento de atos de lavagem de dinheiro. Então temos casos clássicos, como o escândalo do HSBC e tantos outros bancos internacionais que merecem uma regulamentação específica. Até tráfico de pessoas, armas, atividades criminosas mais graves, têm transitado por meio dos bancos nacionais e internacionais. Então a nova circular vem a reforçar esse ambiente que estamos vivendo de combate a crimes, corrupção e há exigência de cada vez mais regras firmes e íntegras conforme as atividades envolvidas.