Imagem ilustrativa da imagem PÁTRIA DISTANTE - Entre o conflito e o preconceito
| Foto: Stringer/AFP



Curitiba - Jornalista, formado em Direito e refugiado. O sírio Amr Houdaifa, 27, mora em Curitiba há três anos, fugido do conflito no Oriente Médio que completou seis anos com um saldo tenebroso de 400 mil mortes e pelo menos 5 milhões de refugiados. Houdaifa conta como foi chegar ao Brasil com apenas 72 dólares no bolso - que gastou em um dia - e sem falar a língua.

Para ele, viver na Síria, mesmo em guerra, era melhor do que a vida de refugiado, por causa da falta de assistência dos países que recebem os imigrantes e pelo sentimento confuso de não ter pátria. O jornalista hoje atua como voluntário da Adus Curitiba - Instituto de Reintegração do Refugiado

Houdaifa é o convidado para uma palestra-debate sobre o conflito na Síria, na próxima quinta-feira (25), a partir das 19h30, no Anfiteatro do Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade Estadual de Londrina. A iniciativa é da União da Juventude Comunista (UJC) de Londrina.

O que o sr. fazia na Síria e por que veio ao Brasil?
Morei 24 anos na Síria, há três estou fora. Eu era jornalista lá, tinha um jornal. Fui para todas as lutas que consegui, para fazer fotos e escrever sobre elas. Uma vez eu perdi de uma vez a câmera e o dedo. Ainda bem que foi só o dedo.

O que aconteceu?
Estava tirando foto, uma bala entrou pela câmera e saiu no meu dedo. Foi terrível. Era uma luta entre o Exército da Síria e os grupos terroristas. Os que chamam de rebeldes, mantidos pelos Estados Unidos. O Estado Islâmico é menos pior que eles.

Por que o Estado Islâmico é "menos pior"?
Porque eles estão lutando por uma ideologia na qual acreditam. Os outros [rebeldes] lutam por causa de dólar. Mas a violência é a mesma. Eu não apoio nem um lado nem outro. Eu não apoio o governo da Síria, mas apoio o Estado da Síria, que significa a manutenção dos sistemas de saúde, habitação, educação, a história da civilização.

E isso envolve depor o presidente Bashar Assad?
Sou contra, porque significaria acabar com a Síria. Eu não gosto dele, mas isso não é importante na política. O mais importante é a pátria, que independe de partidos. É manter os sistemas funcionando.

Como é viver num país em guerra?
No começo dá muito medo. Depois, começa a acostumar. É difícil de acreditar, eu sei. No começo a gente ouvia o som das bombas e descia correndo para o pátio do prédio. Depois, a gente ia abrir as janelas pra ver onde caiu.

O sr. acompanhava a luta armada?
Conheço todo o país, fazendo matérias e trabalhando no Partido Comunista Sírio. Então vi como funcionava, porque estava em cima das notícias. Como jornalista, sempre acompanhava tudo. Aqui no Brasil não trabalho com isso, faço pão sírio, comida mesmo, para sobreviver. Mas eu ainda mando textos e artigos para o jornal da Síria.

O sr. morou na Síria nos três primeiros anos do conflito, que já completou seis anos, e depois outros três como refugiado [no Líbano e Brasil]. Quais as diferenças?
É melhor morar no país com conflito. É uma resposta estranha, né? É que é muito difícil quando você se sente um refugiado, um estrangeiro. Se eu morrer amanhã, não sei o que vai acontecer com o meu corpo. Você não sabe se vai voltar a ver a sua família, as coisas que você gosta. Eu sofri no Líbano e no Brasil. O tratamento dos refugiados no mundo é muito ruim. Eles são usados como uma carta política pelos governos.

Como é ser refugiado no Brasil?
O Brasil dá visto de turismo, mas demora para dar visto de refugiado. Nesse meio tempo você não tem nada. Aí depende de ONGs, de igrejas que ajudam. Por exemplo, tem a ONG Adus, que eu fui o primeiro voluntário em Curitiba, que me ajudou muito e agora eu ajudo eles.

O que o sr. passou no Líbano?
Os sírios sofrem escravidão lá. Depois das 19h não podem sair na rua. Por causa de racismo, xenofobia, mesmo. Só acontece com os sírios, com os outros não.

O Líbano é o país que mais recebe refugiados sírios. De onde vem esse racismo?
Não só pela quantidade de sírios, mas algo psicológico também. A política do Líbano está bem relacionada com a política americana. A Síria recebeu dois milhões de refugiados libaneses e não fez barracas, eles moravam em casas. Já os libaneses fizeram barracas e não receberam nenhum sírio em casa. Eu morei lá um ano e pagava aluguel, impostos, tudo. Por exemplo, um jornalista libanês ganha mil dólares por mês, e um sírio recebe 200. E por fim eu escrevi um artigo crítico sobre um político da região e a polícia me mandou pra fora do país. Graças que eu tinha o visto do Brasil e vim para cá.

Já pensava em vir para o Brasil?
Tentei muitas vezes sair do Líbano, e o Brasil foi o único que aceitou meu visto. Tentei ir pra Europa, países do Golfo Árabe, nenhum aceitou.

Como é sua rotina aqui?
É boa, mas difícil. Porque eu não tenho meu lar. Tenho uma casa alugada, mas não tenho minha mãe, minhas coisas. Aí tem que trabalhar para pagar as contas e mandar para a minha família na Síria, e também para ajudar financeiramente o jornal que fundei lá. Então faço pão folha, aquele pão grande sírio, que aprendi com a minha mãe. E vou começar a fazer mestrado em Direito na UFPR (Universidade Federal do Paraná) pelo projeto Hospitalidade, voltado para estrangeiros, sobre Direito Internacional e Direitos Humanos, com foco nas decisões da ONU (Organização das Nações Unidas) relacionadas à guerra na Síria. Também faço cursos de português e dou palestras sobre o conflito na Síria e as relações internacionais. Mostrar que é um conflito que não está em outro mundo.

Quais interesses o sr. vê por trás do conflito na Síria?
Além do petróleo, tem também objetivos políticos e econômicos. Vou falar sobre isso na palestra em Londrina. Há um interesse de redividir o mundo e criar um novo centro imperialista, do norte da África até o Afeganistão, no Estado de Israel. Então a ideia é dividir os países do Oriente Médio para que sejam muitos países fracos, que lutam entre si, que são ou apoiados ou atacados pelos EUA. Esse é o papel dos EUA na Síria, apoia os curdos e ataca o Exército da Síria. Essa região tem muito petróleo e eles querem passar por lá com a linha do gás, que vai do Golfo até a Europa, para acabar com a relação com a Rússia, que é por onde passa o gás hoje. Por isso a Rússia está defendendo o governo sírio.

E seus pais, como vivem hoje na Síria?
Vivem numa cidade no sul do país chamada Suedwa. Lá não tem guerra, mas na fronteira da cidade sim. Eles tentaram vir para cá, mas com a mudança de governo no Brasil ficou mais difícil. O Michel Temer começou a negar vistos. O interesse é manter os sírios sofrendo na Síria. Tem uma teoria assim: quando um país sofre um choque, se desestabiliza, os preços sobem, então o povo vai aceitar qualquer solução. Querem que a Síria seja dividida e continue lutando entre si.

Por que você escolheu o Paraná para viver?
Eu pesquisei bastante e achei que Curitiba era mais segura para se viver do que São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades. Quando cheguei, fui para um hotel. Tinha 72 dólares e gastei tudo no primeiro dia. Tive que pedir dinheiro para o meu irmão que mora em Londres, até conseguir arranjar uma casa, fiador, foi tudo uma tragédia.

Ninguém daqui te ajudou nesse começo, nem ONG?
Não, ninguém. Eu não sabia nem onde procurar. Eu tentava falar em inglês com as pessoas, aí encontrei uma que falava um pouco e começou a me ajudar. Olha, dá para fazer um filme sobre tudo isso. Comecei a procurar trabalho, mas sem falar a língua não tem como. Aí comecei a fazer os pães, que minha família sempre fazia. Comprei os materiais, fui fazendo, e deu certo.

Como você acha que os governos federal, estadual e municipal poderiam ajudar os refugiados?
Demora muito para o Brasil mudar o visto de turismo para de refúgio. Nesse tempo a pessoa fica desamparada. Então seria interessante alguma ajuda com moradia. Sem ser campo de refugiados, que considero humilhação. Não são frangos, são humanos. Também seria interessante uma ajuda bancária mínima para quem chega sem nada. Até porque o Brasil foi feito pelo imigrante e refugiado.

Chegou a perder alguma coisa por causa da guerra?
Muitos amigos morreram. Não é fácil falar disso. Mas eu acredito que não são os sírios que fizeram isso no nosso país. É uma guerra internacional na nossa terra.

O sr. enxerga fim para a guerra?
O conflito só vai terminar com um acordo internacional. Mas não sei como isso será possível sem prejuízo ao povo sírio.

Qual sua avaliação da cobertura da mídia sobre o conflito?
Muito ruim. Por exemplo, a imprensa mostra uma luta em uma certa cidade. Mas essa luta acontece em uma rua, não na cidade inteira. A mídia mostra como se o país inteiro estivesse pegando fogo. Ajudam a criar uma crise nacional e internacional.

O sr. sente preconceito pela associação de árabes como terroristas?
Na Europa se sente muito isso. Aqui no Brasil, o preconceito é mais forte com haitianos, por causa do tom de pele. Na ONG que eu trabalho a gente vê isso. Mas eu também já senti. Uma vez teve uma piada de uma funcionária da prefeitura. Ela perguntou se eu era brasileiro, disse que era da Síria, aí ela fez o gesto de ir para trás, como se eu estivesse carregando bombas. Brincadeira sem graça (risos). Mas tudo bem, não posso reclamar.