Sem qualquer receio em manifestar seu desencanto nada lírico com a escolha do cantor e compositor Bob Dylan como vencedor do Nobel de Literatura deste ano e sem endossar o argumento de que uma estratégia populista seja válida para uma premiação literária, o autor de "Chove Sobre Minha Infância", Miguel Sanches Neto, concedeu entrevista à FOLHA sobre os rumos do prêmio criado em 1901, bem como a literatura nos dias atuais.

O também crítico literário e professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Linguagem, Identidade e Subjetividade da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) rechaça a ideia de que a premiação deva valorizar algo que não seja originalmente produzido para ser lido, optando pelo que considera um "conjunto menor de letras". "Temos muitos gêneros próximos da literatura, como receitas culinárias. Usando o mesmo critério, teríamos um chef detentor do prêmio Nobel", dispara.

Para ele, o que confere valor a qualquer prêmio é a qualidade de quem é premiado, e no caso do Nobel, Miguel Sanches Neto defende que a premiação não deve se prender nem ao passado nem ao presente, sob pena de valorizar uma obra que não se faça interessante em outras épocas. O escritor reconhece que o leitor atual é de uma inquietude atroz e muda de texto a todo momento, porém assegura que tal inquietação também se rende "diante de um grande livro".

Quanto ao combustível que deve mover o escritor, o paranaense aposta na "incapacidade de controlar uma história ou um poema que quer nascer". Natural de Bela Vista do Paraíso (Região Metropolitana de Londrina) e versando entre a produção poética e a ficção em prosa, Miguel Sanches Neto enaltece esse direcionamento tanto para o Nobel de Literatura quanto para os colegas de ofício cientes das influências presentes em todas as suas obras. "Todos os meus livros são testemunhos contra mim", arremata.

A Academia Sueca foi alvo de todos os tipos de comentários após anunciar o cantor e compositor Bob Dylan (Robert Allen Zimmerman) como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em uma lista com nomes como Haruki Murakami. De que maneira observou a decisão da academia?
Uma escolha completamente equivocada, por vários motivos. O primeiro deles é o de gênero. Letra de música não é literatura. Pode ser literária, mas não é literatura propriamente dita. Temos muitos gêneros próximos da literatura, como receitas culinárias. Usando o mesmo critério, teríamos um chef detentor do prêmio Nobel. Outro equívoco é a crença de que dando o prêmio a alguém midiático a literatura será valorizada. O que dá valor a um prêmio é a qualidade da obra do agraciado. E qualquer letrista será menor do que os grandes poetas ou narradores. O terceiro equívoco é que deixa de premiar uma grande obra, preferindo um conjunto menor de letras.

Ainda sobre a diferença entre os gêneros, por que as letras de música não podem ser comparadas em termos de valor literário à prosa, poesia e dramaturgia?
Porque são secundárias em relação à literatura. Da mesma forma que o roteiro é secundário em relação ao filme. Quem aí lê por prazer estético um roteiro de filme?

A secretária permanente da Academia Sueca, a também escritora, professora e crítica Sara Danius, em uma das argumentações sobre a escolha deste ano, resgatou o fato de Homero ter produzido textos para serem ouvidos, tal qual o compositor Bob Dylan. Qual a ponte entre esses dois tempos da humanidade? Quais os desdobramentos das novas tecnologias no mercado literário? A Academia de fato quis demonstrar estar alinhada aos novos tempos e às novas demandas?
Este é um argumento no mínimo confuso. Homero viveu em uma época da humanidade em que a literatura ainda não havia se consolidado tal como a entendemos hoje, em que a escrita não tinha peso. O Nobel quer premiar uma obra cujo objetivo é ser lida. Não importa o suporte. Mas que funciona melhor ao ser lida. Uma letra de música funciona melhor ao ser ouvida. Não é uma questão de tecnologia, mas de maneira de fruição. De função principal. Toda letra de música tem na leitura uma função secundária.

Quais desafios a que o escritor tem que estar atento para esses novos tempos e novos modos de consumir a produção literária?
Um escritor busca duas formas de se relacionar com o leitor: a imediata, impactando sobre o seu tempo, e aquela a longo prazo. Literatura verdadeira é aquilo que consegue se fazer interessante em outras épocas. Logo, as novas formas amanhã já são velhas. Mas literatura é sempre.

E o que se percebe desses novos leitores em um mundo de conteúdo espalhado em multiplataformas?
É um leitor inquieto, mudando de texto a todo momento. Mas quando chega diante de um grande livro, ele se faz um ser humano inteiro, totalmente integrado à história.

Acredita que isso possa ser a tendência? No compasso de um novo jeito de consumir literatura?
Sempre haverá muitos outros meios de consumir literatura, isso não é um problema para o escritor, mas toda vez que a literatura se impuser teremos uma suspensão do mundo ao redor e o milagre da fruição estética plena.

O Nobel de Literatura por vezes foi criticado por ser elitista. Acha que as duas últimas escolhas (no ano passado, a vencedora foi a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch,
jornalista e escritora de não ficção) buscam vir na contramão de um suposto intelectualismo?
Neste caso, padece do mesmo mal – que é o populismo. Elitismo e populismo são extremos que se tocam. O Nobel deve sinalizar com uma obra que tentou dizer algo sobre sua época para gerações futuras. Não pode se prender nem ao passado nem ao presente.

Assim como qualquer escolha, o prêmio tem um histórico considerável de grandes escritores que deixou de destacar. Na sua avaliação, quais foram as principais injustiças ao longo de mais de 100 edições?
Todo prêmio sempre comete injustiças. Jorge Luis Borges não ter sido agraciado com o Nobel me parece a maior injustiça deste prêmio, porque ele representa a instituição da literatura em nossa cultura. Dentro da língua portuguesa, Jorge Amado também mereceu o prêmio, pelo grande impacto sobre a humanidade de seus livros. Na língua inglesa, Philip Roth é o maior merecedor do prêmio hoje, por ser o mais clássico dos escritores de grande público.

Ainda sobre injustiças, a menor quantidade de mulheres premiadas tem relação com preconceito de gênero ou acredita que isso passe ao largo das escolhas da Academia?
Não se trata de um preconceito da Academia, mas de uma questão estatística. Historicamente, as mulheres (escritoras) vêm ganhando maior espaço, mas ainda hoje elas são em número bem menor do que os homens. O prêmio reflete isso.

Quais são as fomes/anseios dos leitores? Uma premiação na configuração do Nobel de Literatura também prima por atender isso?
Uma literatura que ao mesmo tempo que entretenha nos passe um conhecimento sobre o mundo.

Como escritor, quais são as motivações legítimas para se lançar à produção de uma nova obra?
A incapacidade de controlar uma história ou um poema que quer nascer. Todos os meus livros são testemunhos contra mim.