Procurador de Justiça e deputado estadual por São Paulo, o tucano Fernando Capez, de 48 anos, garante que tem a receita para resolver uma das questões humanitárias mais dramáticas do País na atualidade: a superlotação carcerária. Para o ex-promotor, que ficou conhecido nos anos 1990 por enfrentar sob ameaças as torcidas organizadas mais violentas do País e colocá-las na clandestinidade, o Brasil tem que construir presídios na mesma velocidade com que a criminalidade avança.

Por outro lado, defende também a aplicação de penas alternativas e o monitoramento eletrônico dos presos. Ele critica ainda a cultura dos juízes de abusar da prerrogativa de decretar prisões preventivas e o governo federal por investir pouco na estrutura carcerária.

Confira os principais trechos da entrevista, concedida à Folha na quarta-feira, instantes antes da palestra de Capez na 7ª Semana Jurídica da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Londrina, no Teatro Marista.

Em todos os níveis da estrutura prisional na região de Londrina e em outras áreas do Paraná há sérios problemas de falta de vagas, com unidades superlotadas e policiais civis trabalhando como agentes carcerários. A própria Polícia Civil admite que a situação gera consequências negativas em toda a política de segurança pública. Como o senhor avalia a questão carcerária hoje?
O problema de superlotação dos presídios não é restrito a Londrina e ao Paraná. É um problema nacional, um problema que perdura há décadas e que decorre de dois fatores. O primeiro é a falta de investimentos no setor. Falta de construção de presídios, falta de contratação de agentes penitenciários, investimentos em tecnologia para facilitar o cumprimento da pena, investimento nas varas de execução penal para acelerar as análises dos pedidos quanto aos direitos dos sentenciados.

O segundo fator é que a criminalidade vem aumentando ano a ano. O caminho imediato é a construção de pequenas unidades prisionais, de 700 a 800 presos cada uma, espalhadas pelo Estado, dividindo esse ônus entre os municípios. Não acho justo que um município seja penalizado com um número excessivo de presídios. É importante também que os municípios que abriguem os presídios tenham uma compensação.

Qual é a opinião do senhor a respeito da presença de um grande número de presos, inclusive de condenados, em delegacias?

O acúmulo de presos em delegacia torna esses distritos um barril de pólvora. Os presos podem fazer rebeliões a qualquer momento, podem fazer reféns policiais, visitantes ou vítimas de crime que vão registrar, podem matar outros presos, que ficam desprotegidos nesse tipo de detenção. Enfim, a delegacia se torna um verdadeiro caos e esse caos implica na queda sensível no nível e na sensação de segurança da população.

Por outro lado, os policiais que deveriam estar se dedicando às investigações, aos inquéritos, ao combate à impunidade, acabam tendo seu tempo todo tomado para cuidar dos presos. É realmente uma situação dramática. Há necessidade urgente de investimentos. O Estado de São Paulo começou a implantar uma nova política carcerária no início dos anos 2000, a fazer licitações para construção de pequenas unidades prisionais descentralizadas por todo o Estado. Com isso, o Estado acabou retirando os presos que estavam cumprindo pena ou aguardando julgamento nas delegacias. Hoje eles ficam abrigados em centros de detenção provisória, de onde são transferidos para as penitenciárias. Isso teve um impacto muito positivo no combate à criminalidade em São Paulo.

Quais as consequências mais nefastas da superlotação carcerária nas delegacias?

O resultado da falta de investimentos décadas atrás foi a criação de organizações criminosas no seio do sistema penitenciário, que a partir do presídio, mediante o uso do celular ou de outro tipo de comunicação externa, comandam a prática de crimes. Na medida em que você consegue separar estes presos, colocar os mais perigosos em regime disciplinar diferenciado, separados dos demais, tirar qualquer tipo de comunicação entre eles, também redunda numa maior diminuição no número de crimes, principalmente das organizações criminosas. Além disso, para a imagem do Brasil é péssimo colocar presos amontoados em depósitos de seres humanos, os países do Primeiro Mundo tendem a ver isso como um fator de subdesenvolvimento, e que impede muitas vezes o acesso a investimentos, a empréstimos. É um questão humanitária que pode acarretar uma série de sanções ao Brasil.

Quais são as razões dessa superlotação?

Hoje nós temos no Brasil cerca de 500 mil presos. Este contingente todo decorre das ações das forças de segurança, das condenações do Judiciário, das prisões em flagrante, das decretações de prisões preventivas. Com isso o número de presos vem crescendo em progressão geométrica, fica difícil para o Estado conseguir dar conta, acompanhar essa demanda crescente. Por mais que sejam construídos presídios, há um grande número de presos a cada ano. Não significa que há ausência de investimentos, mas que esse investimento não está sendo feito no mesmo ritmo do crescimento do número de prisões. É necessário aumentar o número de estabelecimentos prisionais constantemente. Além disso, é preciso retirar de dentro da cadeia quem não precisa estar lá.

Quais são as possíveis soluções a curto prazo?

Nós temos um sistema de monitoramento eletrônico que está disciplinado em lei federal. Embora a lei ainda não autorize isso, o preso poderia, em vez de ficar em uma cela, ficar em casa com a tornozeleira eletrônica, sendo monitorado e controlado, de maneira que se ele saísse de casa seria facilmente detectado, acarretando a revogação do benefício. Também muitas pessoas estão presas preventivamente, mais de 40% dos presos são provisórios, que ainda não têm condenação definitiva. Hoje há legislação que permite sejam aplicadas medidas alternativas também para os que aguardam julgamento. Ele pode ficar sob monitoramento eletrônico, pagar fiança, pode ficar proibido de manter contato com a vítima, ou de frequentar determinados lugares, ele fica obrigado a comparecer periodicamente ao fórum. Podemos usar mecanismos de descarcerização, retirar do sistema carcerário quem não precisa estar lá.

O Paraná está prestes a adotar as tornozeleiras eletrônicas. O senhor acredita que estes equipamentos são eficientes?

É preciso muita cautela para investir numa tecnologia deste tipo. A primeira cautela é não comprar o aparelho. A compra é um erro administrativo porque a tecnologia muda constantemente, o aparelho quebra, precisa de manutenção. O recomendado é fazer um contrato bem feito, que coloque a empresa como fornecedora do serviço na forma de locação. O segundo ponto é buscar uma tecnologia avançada que não precisa de equipamentos como a unidade de monitoramento local, uma espécie de maleta que tem que ficar próxima à tornozeleira. Hoje os sistemas mais avançados já utilizam uma central para o controle, num âmbito muito mais amplo que a maleta. É importante também que a tornozeleira não ofenda a dignidade do preso, não o exponha, não o humilhe, não implique num sofrimento moral insuportável, tem que ser um dispositivo que possa ficar oculto, sob uma calça e não coloque em risco a saúde do monitorado. É uma opção barata e ao mesmo tempo ela leva em conta a finalidade de ressocialização da pena.

Qual política o senhor adotaria para reduzir o caos no sistema carcerário?

A construção de presídios associada com mecanismos de descarcerização. A não aplicação de pena privativa de liberdade a quem não precisa receber este tipo de pena. Em condenações de até quatro anos, o sujeito pode receber uma pena de prestação de serviços à comunidade ou de limitação de fim de semana, em que será obrigado a participar de alguma atividade.

Os contribuintes veem com bons olhos os gastos com novos presídios?

A sociedade está muito mais amadurecida. A população já percebeu que o sistema carcerário eficiente implica em maior segurança. Não adianta prender e colocar o indivíduo numa escola do crime para ele se aperfeiçoar, para cometer mais delitos. Cerca de 80% dos criminosos que passam pelo sistema carcerário reincidem. E de modo muito mais violento: do furto passam para o roubo, do roubo para o latrocínio. No passado, a sociedade foi induzida a entender que colocar o indivíduo na prisão, da maneira que fosse, era uma prioridade para o combate à violência.

O Judiciário tem resistência em aplicar penas alternativas?

Ainda não há uma cultura no Poder Judiciário como um todo de se aplicar mais penas alternativas. É uma mentalidade ainda repressiva. Mas há equívocos nesta cultura, tão arraigada entre os magistrados. Exemplo: a prisão preventiva só pode ser aplicada quando não há outra maneira de se garantir o controle do suspeito. O Código de Processo Penal elenca nove opções diferentes. Somente quando nenhuma delas é considerada suficiente é que a prisão preventiva deve ser aplicada. O que se tem visto, é que, sem qualquer justificativa, quanto ao seu caráter subsídiário, a prisão preventiva é aplicada como primeiro recurso. Isso implica numa inobservância, num descumprimento da lei e do seu espírito. É importante incentivar e praticar a cultura da pena alternativa. Mas é também importante que haja um sistema de fiscalização do cumprimento destas penas. Caso contrário, elas se tornam penas virtuais, que ninguém cumpre, ninguém fiscaliza, que gera impunidade. Essa desconfiança sobre a aplicação da pena pode explicar o porquê dos juízes optarem pela pena convencional, de privação de liberdade.

Por que mesmo com o sistema carcerário estando à beira do colapso absoluto, os cidadãos exigem penas mais duras e um número maior de prisões?

É a solução psicologicamente de maior apelo. Mas não traz nenhuma segurança à sociedade o endurecimento das penas. Se não houver uma estrutura de investigação, de polícia judiciária eficiente, confiável, que consiga investigar os fatos que chegam ao conhecimento do Estado e levá-los até o Ministério Público, se não houver uma Justiça célere, eficiente, que consiga dar respostas num prazo razoável e que não fique discutindo e rediscutindo por meio de recursos intermináveis questões já decididas, se não houver execuções penais que utilizem unidades prisionais capazes de dar ao condenado uma chance de recuperação, e se essas medidas não forem combinadas com medidas de caráter social e preventivas, como investimento em educação, saneamento básico, tirar a criança da rua, colocá-la em atividades esportivas, mantendo-a longe das drogas, não vamos avançar. Só o aumento da pena não vai resolver. Se fosse, seria muito fácil. A lei dos crimes hediondos teria acabado com os latrocínios, os estupros e homicídios qualificados.

Houve avanço no combate às organizações criminosas nos presídios?

Melhorou sim. Dez anos atrás essa situação era caótica. Ainda subsiste o crime organizado no sistema carcerário, mas ele é monitorado, é controlado, há uma maior confiabilidade dos agentes, os criminosos não encontram tanta facilidade mais. Mas ainda estamos distantes do ponto de termos eliminados completamente essas organizações.

Como eliminá-las?

Temos que investir na pessoa, no ser humano. É fundamental ter agentes penitenciários bem treinados, bem remunerados, que têm uma carreira em que eles possam ir evoluindo e tendo incremento nos seus rendimentos, um maior investimento na tecnologia para detecção de aparelhos celulares e ter uma legislação que reprima isso adequadamente.

Qual o papel que o governo federal deve cumprir na expansão da estrutura penitenciária?


O governo federal deve sim investir na construção de presídios. Primeiro, Brasília tem que diminuir a retórica, o discurso, a promessa e passar para a ação prática e efetiva. Na medida em que o Estado e o Município, na sua capacidade de investimento, se veem no limite deste investimento e na medida em que hoje a criminalidade tem um caráter nacional, a questão passa a ser uma prioridade. E a União tem muito mais condições do que os Estados e Municípios de fazer esse tipo de investimento, até porque ela fica com a maior parte dos impostos recolhidos nos Estados e nos municípios. Os governadores deveriam se reunir e estabelecer planos de atuação estratégica em conjunto com o governo federal, no sentido de harmonizar e congregar os esforços.