Protesto pela paz em Medellín poucos dias após a vitória do "não": acordo em suspenso
Protesto pela paz em Medellín poucos dias após a vitória do "não": acordo em suspenso | Foto: Raul Arboleda/AFP



Aclamado pela comunidade internacional e ganhador do prêmio Nobel da Paz pelos seus esforços para encerrar um conflito interno que já dura 50 anos na Colômbia, envolvendo guerrilheiros e forças do governo, o presidente Juan Manuel Santos enfrenta resistências junto à população. Recente plebiscito teve a maioria votando contra o acordo de paz assinado com o líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Rodrigo Londoño Echeverri, o Timochenko. No entanto, para a professora de direito internacional e de direitos humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Danielle Annoni, interesses políticos e econômicos de grupos opositores a Santos interferiram no resultado.

Segundo a especialista, ao classificar o acordo como gerador de impunidade aos guerrilheiros, o ex-presidente Alvaro Uribe, ainda com muita influência no País, conseguiu reduzir o impacto da medida do seu ex-aliado e atual presidente colombiano. Danielle destaca ainda o papel irrelevante do Brasil no processo de paz na Colômbia.

No plebiscito realizado na Colômbia, a maioria dos eleitores discordou do acordo de paz e a comunidade internacional demonstrou surpresa quando os colombianos rejeitaram um documento que pode encerrar uma guerra interna de 50 anos que já matou mais de 200 mil pessoas. Faltou ao governo explicar melhor o assunto ou há outras variáveis envolvidas nesse processo?
Primeiro é preciso registrar que o "não" venceu por uma diferença de pouco mais de 5 mil votos, quase um empate técnico. Em segundo lugar, existem dois grandes grupos de poder na Colômbia atualmente, sendo um deles liderado pelo presidente Juan Manuel Santos, e por outro lado, temos um grupo de oposição, que é o do Alvaro Uribe, que conseguiu liderar essa disputa contra o acordo. Ele é um nome super controverso pelo seu (suposto) envolvimento com o narcotráfico e com o comércio de armas. É verdade que esses não foram os argumentos invocados, quando a gente discute o acordo de paz numa guerra, os argumentos levantados são sempre de direito internacional e de direitos humanos. O grande argumento de quem era pró-acordo, eu, como pesquisadora, me coloco assim, era de que isso selaria uma guerra de mais de 50 anos, para reestruturar o País, principalmente as regiões mais devastadas pelo conflito. Isso poderia integrar essas pessoas, suas atividades dentro de uma regularidade. O argumento contrário ao acordo é que previa uma certa impunidade para os crimes de guerra, o que é proibido pelo direito internacional. Na verdade, ambos os lados têm razão, mas um acordo em qualquer lugar do mundo e em qualquer matéria implica obrigatoriamente em concessões. Não existe um acordo em que só um lado ganha e o outro lado só perde, isso não é acordo. O acordo tinha realmente pontos complicados, na parte do direito internacional, em especial na questão da anistia, que é o tema discutido na América Latina há uns 15 anos, e que no Brasil é o grande caso Araguaia, em que a Lei da Anistia só protegeria um lado, segundo a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos. O grande argumento contrário ao acordo com as Farc era de que perpetuaria uma impunidade aos criminosos de guerra e que isso poderia fomentar outros grupos armados a tentarem o mesmo: fazer uma guerra e ao final fazer um acordo em que não fossem punidos.

Existem ainda os argumentos políticos?
Além desses argumentos técnicos, o que a gente tem é uma manobra econômica e política de conflitos armados, que é direito internacional humanitário, onde há pessoas que lucram com a guerra, que é um grande negócio, um dos mercados mais lucrativos do mundo, pois gera uma movimentação econômica absurda em termos internacionais, desde o comércio legítimo, como pesquisas, medicamentos, alimentos e o comércio regular de armas até a parte ilícita da guerra, de tráfico de pessoas, de drogas, de armas, ou seja, a guerra é um grande comércio. Ao que me parece, a Colômbia não conseguiu superar os interesses privados e acabou votando pelo "não".

Como contemplar os direitos humanos das vítimas da guerra nesse acordo de paz? Teria sido este também um ponto polêmico no documento?
Li um artigo sobre isso, com dados estatísticos, que dizia justamente o contrário, que as vítimas votaram a favor do acordo. Houve algumas entrevistas, inclusive, com determinadas comunidades mais ao norte da Colômbia, mais próximas da região de conflito, onde o "sim" venceu de forma disparada. Não me parece que haveria uma disputa entre o interesse das vítimas e o do governo, me parece que isso é uma construção que está sendo colocada para justificar o "não" ao acordo, porque as vítimas, uma vez reconhecidas como vítimas, têm direito à indenização. Veja, hoje são vítimas de um crime que não existe, de uma guerra que não existe, pois se não há acordo, o Estado nem reconhece isso como uma guerra e sim como rebeldes tentando tomar o poder. Se você não tem um instrumento do direito internacional, você não consegue aplicar as vantagens do direito internacional, com algumas ressalvas, obviamente. Me parece que essa não era a questão. Se fosse, eu te diria que a Colômbia assinou os tratados de direitos humanos de plano global e as vítimas poderiam recorrer tanto ao sistema das Nações Unidas como ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos para reivindicar os seus direitos, com base em uma jurisprudência fértil.

As Farc são formadas por quem, quais são a origem e o objetivo desse grupo?
É um grupo muito antigo, que começa como um grupo revolucionário, em princípio paramilitar, ou seja, havia muitos dissidentes do próprio exército, do governo, que se rebelaram contra o governo ditatorial, que tentaram tomar o poder para formar um governo socialista. Mas isso deriva também do contexto de Guerra Fria, de toda a influência que o continente teve com os processos de ditadura, logo depois da Segunda Guerra Mundial, em especial na década de 60. Na medida em que as Farc vão perdendo o prestígio popular com o processo de democratização nas Américas e a implantação do liberalismo capitalista, acabam sendo alimentadas pelo narcotráfico. Uma das grandes críticas que se faz às Farc hoje é essa aproximação, para se sustentar, com o tráfico, e isso acaba tendo outros tipos de desdobramento em termos de reconhecimento político, como grupo. A tentativa desse acordo nesse momento é paradigmática, porque surgiria como exemplo a ser aplicado em outras regiões de conflito armado.

Do ponto de vista internacional, os acordos de paz internos dos países devem seguir regras gerais?
Existe um conjunto de princípios e costumes internacionais universais que regem todos os estados, novos ou velhos, e existem compromissos internacionais que a própria Colômbia assumiu, entre eles, tratado de direitos humanitários, tratado de direitos humanos, que ela não poderia violar em acordo, mesmo sendo interno.

A premiação do presidente Juan Manuel Santos com o Nobel da Paz, mesmo com o resultado do plebiscito, demonstra que a comunidade internacional apoia esse acordo?
O fato do presidente ter sido reconhecido, como foi declarado pelo próprio comitê do Nobel da Paz, representa o reconhecimento do esforço na tentativa da paz, mais do que no resultado do plebiscito. Não conheço especificamente as regras do comitê hoje, vale destacar que um dos nomes indicados é o da brasileira Maria da Penha, mas o presidente colombiano ganhou porque o comitê acreditou que esse esforço político é forte e acaba influenciando as suas pretensões políticas no plano interno, como reeleição e apoio a outro candidato, portanto é um esforço comprometedor. Estou repetindo a declaração do próprio comitê, que foi questionado porque reconheceu o trabalho de Juan Manuel em um acordo frustrado. Foi um reconhecimento pelos esforços pela paz e não especificamente como presidente da Colômbia.

Que papel o Brasil tem desempenhado nesse acordo de paz discutido na Colômbia?
Nada que valha a pena mencionar. O Brasil, principalmente nessa transição de governo, deu as costas para a América Latina. O País participou da cúpula da Unasul, um bloco de integração regional, durante vários anos se manifestou favorável ao acordo e aberto a ajudar na recepção de refugiados, como na reintegração daqueles que quisessem voltar à Colômbia, sempre com discurso político aberto, mas não pragmático. O novo governo nem isso, em razão da manifestação que muitos países tiveram na América Latina de não reconhecer formalmente o governo Temer. Isso gera mais conflito na região de fronteira, pois a pessoa acaba abandonada nos dois estados, o colombiano e o brasileiro.

Essa guerra que existe na Colômbia há meio século é o principal conflito interno das Américas? Em que posição estaria em comparação com o resto do mundo?
Acho que cada região tem a sua característica, mas a Colômbia é um dos eventos mais impactantes na literatura e no direito internacional, que vai se desdobrar em questões econômicas, históricas, geopolíticas, políticas e sociais. O conflito, apesar de parecer restrito ao território colombiano, é um conflito de natureza internacional e afeta todo o seu entorno, é o país nas Américas que mais produz refugiados no mundo, perde hoje por pouco para países como a Síria e Sudão. A Colômbia gera um reflexo disso em termos de economia regional e isso enfraquece a formação de blocos na região, como no caso da Unasul, ou a integração maior do Mercosul, produz refugiados que invadem outros países pobres, como o Equador, que por uma questão constitucional não rechaça os refugiados. O Brasil já tem um número significativo de refugiados colombianos; afeta a economia de toda a América Central, porque através do Plano Colômbia, que é um acordo de cooperação militar com os Estados Unidos, os americanos participam da militarização e fazem controle de território na Colômbia, com o discurso oficial de conter o tráfico na sua origem, quando na verdade só gera mais preconceito, discriminação e violência. Então o caso colombiano é mundial, de preocupações que comovem há muitos anos toda a comunidade internacional. Nós no Brasil estudamos pouco o caso colombiano, mas universidades no exterior, na Inglaterra, nos Estados Unidos, têm centros de estudos específicos sobre a América e em especial a Colômbia. As maiores quantidades e qualidades de trabalhos publicados em termos de direito internacional sobre conflitos armados são feitas no exterior que estuda o caso colombiano. O acordo de paz era algo paradigmático, era um governo reconhecendo um adversário, o grupo de guerrilha, como ator do direito internacional, quando a maioria dos estados nega a existência desse ator para não aplicar as regras do direito internacional, e o segundo ponto é abrir diálogo com esses novos atores na tentativa de agregá-los nas políticas construídas pelo Estado e não mantê-los sempre à margem, o que só aumenta a discriminação.

Apesar do plebiscito, o acordo de paz entre governo colombiano e as Farc está assinado. O que esperar agora?
Eu não conheço bem a Constituição colombiana para saber se caberia uma nova consulta popular e em qual prazo, e até que ponto o fato do plebiscito ter negado o acordo interfere no vigor do documento. No plano do direito internacional, o acordo é formalmente perfeito, não tem problemas, mas no plano interno, no direito colombiano, é preciso analisar se mesmo com a população dizendo "não" ele entrará em vigor ou se é preciso aguardar um período de seis meses, como seria no Brasil, para fazer uma nova consulta. Eu espero que o governo continue a negociar com as Farc, que faça as alterações no acordo onde estão os obstáculos e que submeta novamente à consulta da população, mais informada, mais participativa.