Imagem ilustrativa da imagem COMBATE À CORRUPÇÃO - Delação polêmica
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A Operação Lava Jato completou três anos em março com números expressivos. No último balanço, divulgado há dois meses, já eram 198 prisões, 328 denunciados e 89 condenados. De acordo com o Ministério Público, os resultados foram possíveis, em grande parte, graças ao instrumento da delação premiada. Até março, 127 acordos já haviam sido homologados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Por outro lado, há que condene o uso das delações. Na última semana, o Ibradd (Instituto Brasileiro do Direito de Defesa) protocolou um mandado de segurança no STF para cassar a homologação do acordo de delação premiada dos donos da JBS, Joesley e Wesley Batista. O Ibradd considera que houve excesso de benesses aos delatores, que confessaram fazer parte de um esquema bilionário de corrupção. Ao contrário de outros delatores que cumprem penas em regime fechado, como o empresário Marcelo Odebrecht, ou com tornozeleiras eletrônicas, os irmãos Batista foram penalizados apenas com multa de R$ 110 milhões cada.

Em entrevista à FOLHA, o advogado Paulo César Busato comenta sobre a origem da delação premiada, que data do final do século 16, e sua utilização em países como a Itália e os Estados Unidos. Autor do livro "Comentários à Lei de Organização Criminosa" e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ele argumenta que "nenhum instituto jurídico é bom ou mau". "A discussão principal é sobre a forma como as delações são usadas", avalia.

Folha - Como o sr. avalia a delação premiada?
Paulo Busato - A delação premiada é um instituto bastante antigo, remontando ao direito ibérico, já que constava nas Ordenações do Reino e esteve presente nos títulos VI e CXVI do Livro V das Ordenações Filipinas. No Brasil, o instituto era uma espécie de perdão aos delinquentes que perdurou até a entrada em vigor do Código Criminal do Império. Daí desapareceu no ordenamento brasileiro. Não obstante, este instituto teve grande difusão, especialmente nos países do "Common Law" (fundamento dos sistemas jurídicos dos países anglo-saxões mais baseado na jurisprudência que nos atos legislativos ou executivos) e é daí que, depois de ser admitido em vários países de matriz jurídica continental, em especial a Itália, acabou reintroduzido no Brasil. Com isto, quero dizer que não se trata propriamente de uma novidade no mundo jurídico. Nenhum instituto jurídico é bom o mau em si. A discussão, neste caso, é de como o instituto jurídico é empregado.

Como isso funciona em outros países?
O modelo de nossa legislação, a colaboração premiada, segue, em boa medida, as experiências havidas em distintos países. Talvez os maiores pontos de referência para a legislação brasileira tenham sido as leis da Itália e dos Estados Unidos. Na Itália, a delação teve lugar inicialmente como uma iniciativa para desbaratar organizações terroristas. A coleta de provas pelos crimes perpetrados por terroristas era muito difícil por conta dos vínculos estabelecidos entre eles e, geralmente, se encontrava a possibilidade de castigar apenas aqueles agentes menos importantes da organização. Através da premiação para estes passou-se a lograr alcançar os mentores das estruturas criminosas.
Nos EUA, a fórmula é conhecida como "plea bargaining" (sistema negocial). Como o nome evidencia, trata-se de uma negociação entre o representante do Ministério Público e o acusado. Ela tem lugar durante o processo de coleta de provas para a apresentação do caso, o que seria o equivalente ao nosso inquérito policial. Lá, o Ministério Público exerce um controle efetivo da atividade policial, especialmente na coleta de provas e, de outro lado, tem uma ampla autonomia para negociar e decidir pelo prosseguimento ou não da acusação, uma verdadeira disponibilidade da ação penal. Isso leva à completa resolução de um grande volume de casos sem chegar a apresentá-los à apreciação do Judiciário.

E a utilização na Lava Jato? Alguns criticam e falam em banalização, já o Ministério Público argumenta que não conseguiria os resultados sem as delações.
É impossível opinar a respeito da aplicação em cada caso sem ter os autos do processo em mãos. Creio que não se pode fazer nenhuma destas duas afirmações genericamente. Não é razoável falar em banalização porque o fato de que haja muitas delações não significa que seu uso não tenha sido necessário em um grande volume de situações processuais. Por outro lado, a afirmação de que não se conseguiria os resultados sem as delações não é nada além da afirmação do óbvio. Isso, por duas razões. Primeiramente, porque os meios de prova produzem seus próprios resultados e é lógico que, ao contar com a colaboração, tais resultados se modificam. Portanto, realmente não se pode dizer que o resultado seria o mesmo sem o instituto. Por outro lado, também é verdade que, sendo a colaboração premiada é um meio excepcional de obtenção de provas, ela simplesmente não deve ser usada quando os resultados probatórios possam ser obtidos por outros meios. Daí que a afirmação de que é imprescindível para a produção de certos resultados nada mais faz do que afirmar o óbvio. Se não fosse necessária consistiria em medida abusiva.

Para muitos, o resultado dos acordos parecem soar como impunidade, como no caso dos irmãos Batista. Como o sr. avalia essa questão?
Novamente, ressalto a dificuldade de afirmar a necessidade ou não da aplicação da colaboração em um caso específico sem ver a situação probatória dos autos. Por outro lado, há algumas coisas que se pode afirmar com base simplesmente na lei. A Lei de Organização Criminosa refere que a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Portanto, há critérios claros a respeito dos níveis diferentes de benefícios que se pode estender aos réus. Por outro lado, a lei admite que seja oferecido o perdão judicial (que significa a extinção do processo sem aplicação de consequências ao réu, mesmo tendo ele efetivamente praticado a conduta investigada) ao acusado como benefício derivado da colaboração, até mesmo se este benefício não tiver sido cogitado inicialmente na proposta.

Além disso, é também permitido ao Ministério Público deixar de oferecer denúncia. Entretanto, isso só pode ocorrer se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. O que não é correto é deixar de denunciar precisamente as pessoas que sejam líderes da organização que se investiga. A razão para isso é muito simples. O instituto da delação é meio excepcional de prova utilizado para alcançar criminosos influentes, que normalmente não seriam alcançados. Por isso, se oferece as benesses a membros menos importantes da organização para que sua colaboração permita alcançar os mais importantes. Não tem absolutamente nenhum sentido oferecer os benefícios justamente para aqueles que estão no topo das organizações criminosas.

Em que casos a delação premiada pode ser usada?
A delação premiada é um meio excepcional de produção de provas, voltado especialmente para os casos de organizações criminosas. Entretanto, ela já figurou em outras leis recentes. Inicialmente figurou na Lei de Crimes Hediondos; também foi prevista para crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e contra a ordem tributária. Mais tarde, falou-se no instituto em uma primeira lei de crimes praticados por organização criminosa. A prática forense não contava, porém, com muitos casos de aplicação do instituto. Isto difundiu-se mais com o advento da Lei de Lavagem de Dinheiro. Também se previu a possibilidade de delação na lei que regula a proteção de testemunhas; na Lei de crimes de Tráfico de Drogas e nos acordos de leniência para pessoas jurídicas, em infrações contra a ordem econômica. De qualquer modo, a regulamentação completa do procedimento da colaboração só aparece na Lei de Organização Criminosa, de 2013.

Acredita que o uso do instrumento possa se difundir?
Seguiremos convivendo com este instituto que é uma tendência de todos os sistemas jurídicos, queiramos ou não. O instrumento tem ampla previsão legal, mas como meio excepcional de prova que é, deve ser utilizado de forma igualmente excepcional. Uma difusão passiva de sua fórmula dependeria de uma completa revisão da estrutura do processo penal brasileiro, aderindo a um modelo de justiça penal negociada e de disponibilidade da ação penal pelo Ministério Público.