"O Brasil está me dando um palco para falar, mas tem milhares de mulheres negras com talento e potencial sem nenhum espaço", afirma  Alexandra Loras
"O Brasil está me dando um palco para falar, mas tem milhares de mulheres negras com talento e potencial sem nenhum espaço", afirma Alexandra Loras | Foto: Anderson Coelho



Ao desembarcar em Londrina na última terça-feira (14), a ex-consulesa da França em São Paulo, Alexandra Loras, foi direto para o saguão do hotel onde atendeu a equipe da FOLHA. Cordial, ela mesma buscou o melhor espaço para a entrevista e ainda se preocupou em compor um cenário com um arranjo de flor. Loras foi apresentadora de televisão, após se graduar em jornalismo. Escreveu livros, frequentou a prestigiada IEP (L'École Livre de Sciences Politiques) de Paris, instituição de formação da elite política francesa, e desde então vem acumulando uma vasta experiência como consultora e palestrante em empresas, como o Google.

Mas contar sua trajetória profissional pelo currículo seria pífio por parte da reportagem, pois sua atuação em diferentes territórios é movida por grandes frentes: a defesa da diversidade nos ambientes corporativos, o empoderamento de mulheres negras e a luta contra o preconceito racial.

Loras esteve pela primeira vez em Londrina, a convite do coletivo de mulheres negras "Black Divas", com o objetivo de ajudar o público feminino a resgatar a autoestima e seus valores, a partir de sua própria história. "Gosto muito de compartilhar minha experiência porque sou uma mulher que nasceu no gueto mais perigoso da França, com uma trajetória familiar complicada e uma voz dizendo que eu não poderia ocupar os espaços de poder. Mas eu busquei meus valores e cheguei à melhor escola de ciências políticas da Europa", conta.

Ao ser questionada sobre o título de líder ativista, ela responde que prefere se posicionar mais como uma antropóloga que usa ferramentas da sociologia e filosofia para trazer reflexões que mexam com o sistema, com a sociedade. "Vejo que tenho espaços de fala porque tenho um status diplomático, porque cheguei aqui neste país como consulesa da França. Hoje, o Brasil está me dando um palco para falar, mas tem milhares de mulheres negras com talento e potencial sem nenhum espaço", comenta.

Nesse pensamento, Loras se pergunta onde é que estão o Barack Obama, Spike Lee e Beyoncé brasileiros, e faz questão de lembrar que grandes invenções foram feitas por negros, como o semáforo, o marcapasso, geladeira, ar-condicionado, a antena parabólica. "Tem tantos negros talentosos para agregar valor à sociedade, mas eles não têm oportunidade de se expressar, nem mesmo de colocar seu ponto de vista", aponta ela, que cita um exemplo recente: a demissão do apresentador da Rede Globo, William Waack.

"Nós vimos muitos brancos falando que ele não é racista, mas cadê os negros na pauta? Deixe os protagonistas que são vítimas do racismo falar se eles se sentiram humilhados, agredidos e desrespeitados", provoca.

ENXERGAR A REALIDADE
Casada com o diplomata Damien Loras, com quem tem um filho, Alexandra se mudou para o Brasil há quatro anos. E aqui, entre os inúmeros países onde morou e visitou, observou uma realidade cruel: "o Brasil é o país mais racista do mundo, de longe."

A resposta para tal afirmação é dada por ela mesma. "Depois da Nigéria, é o país que mais tem negros no mundo inteiro (54% de negros autodeclarados) e que não consegue enxergar a própria realidade. Os brasileiros choram sobre o Charlie Hebdo, sobre os ataques terroristas da Europa, mas tem um genocídio acontecendo aqui que é muito pior que lá. E é isso o que me incomoda", diz.

Para se ter uma ideia, a cada 100 pessoas assinadas no Brasil, 71 são negras, de acordo com o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em parceria com o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Loras prossegue a fala afirmando que o racismo é sutil. "Os brancos falam que o racismo é velado no Brasil, mas é porque eles não passam pelas humilhações cotidianas pelas quais passamos", diz ela, citando que ao frequentar o supermercado e comprar produtos importados por ser estrangeira, sempre é rodeada por um segurança. E no aeroporto de Guarulhos, sua mala é sempre revistada. "Viajo muito e sou revistada em 80% das vezes, enquanto meu marido nunca foi em dez anos de casados", revela.

INVERSÃO DE PAPEIS
Loras diz que no Brasil a população é bombardeada o tempo todo com mensagens subliminares sobre como odiar, ter medo e inferiorizar o negro. Por isso, ela tem certeza que descobriu sua missão de levar o público a repensar o quanto a sociedade tem uma narrativa egocêntrica, que ajuda a trazer raciocínios racistas.

"Somos todos responsáveis para reequilibrar nossa sociedade porque basicamente ainda é o branco que tem a chave do jogo, que tem privilégios, que tem dificuldades para nos contratar, enxergar nosso potencial, nos dar respeito e dignidade dentro da narrativa da novela e dos desenhos animados", sustenta.

Para ela, o racismo está tão instalado em todos os aspectos da sociedade que as pessoas nem param para questionar o problema. "Estamos acostumados a usar nude, lápis cor da pele, shampoo normal. O que é essa normalidade? Temos que entender que a luta contra o racismo não é combate. É uma obra em construção", ressalta.

Em suas palestras, Loras faz uma dinâmica que ela chama do "mundo inverso" para incitar essa reflexão. Ela pede para que as pessoas imaginem que o mundo é invertido, onde tudo que é feito pelos negros é considerado lindo, inteligente, intelectualmente e esteticamente superior. Até as narrativas dos livros didáticos, desenhos e da mídia teriam apenas personagens negros, assim como os inventores, revolucionários, políticos e até o Papa.

"E a única coisa que sabemos sobre os brancos é que foram escravizados. Como seria essa sociedade? Chocante, cruel e absurda. E em 2017, é esse tipo de sociedade que nós negros ainda temos", salienta.

No próximo mês, Loras vai expor seu trabalho chamado de "Artivismo Negro", na galeria Rabieh, em São Paulo. "Vou revisitar personagens da história, de negros, como a Xuxa, Temer, João Dória, William Wack, Charles Chaplin, Rainha da Inglaterra, entre outros."

CONSCIÊNCIA NEGRA
Alexandra Loras esteve em Londrina uma semana antes do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro e faz questão de validar a data. "A consciência negra não tem cor. Meu filho nasceu branco, mas ele vai ter a consciência negra. Então, quando escuto os brancos perguntando quando vão ter o dia da consciência branca, eu digo que eles têm os 364 dias do ano", afirma.

Ela sabe que a data não é considerada um feriado em Londrina. "Acho um absurdo porque a cidade tem 37% da população de negros, conforme o levantamento do coletivo Black Divas. São 24 horas para refletir e não esquecer os 400 anos de escravidão, humilhação e violência extrema. Acho muito triste não comemorar", finaliza.

Confira a entrevista completa: