Integrantes da comissão usam bandanas no evento para que sejam reconhecidos e possam receber as denúncias
Integrantes da comissão usam bandanas no evento para que sejam reconhecidos e possam receber as denúncias | Foto: Fotos: Anderson Coelho



Londrina sedia desde o início do mês a 8ª Edição dos Jogos Inter Atléticas (JIA), com participação de 20 equipes (16 na primeira divisão e 4 na segunda) formadas por estudantes de Associações Atléticas de Londrina e região. Neste ano, o evento esportivo conta com uma novidade: foi formada uma comissão social cujo principal objetivo é coibir comportamentos machistas, racistas e LGBTfóbicos nas quadras e também fora delas. Em outras edições da competição, grupos de torcedores não pouparam comentários ofensivos a parte dos atletas.

A necessidade de criar regras de conduta em competições esportivas universitárias foi reforçada neste ano pelo caso de um aluno de medicina da UEL (Universidade Estadual de Londrina) que, após fazer uma postagem violenta e machista contra atletas do curso de medicina da UFPR (Universidade Federal do Paraná) em uma comunidade dos jogos Intermed Paraná, foi proibido de participar do evento e deve responder a um Processo Administrativo Disciplinar na instituição de ensino. O estudante também foi expulso dos JIA. No texto exposto nas redes sociais, com palavras de baixo calão, ele chama as atletas de "vagabundas" e pede que estejam limpas para que pudesse praticar ato sexual anal com elas.

"Não tem como ser mulher, negro ou gay sem sofrer assédio nesses eventos. Infelizmente o ambiente universitário é reflexo de uma sociedade que tem comportamentos preconceituosos", opina o jornalista Renan Duarte, que tem experiência em JIAs e apoiou os estudantes na criação da comissão. "A ideia é anterior ao caso do estudante de medicina, mas esse é um exemplo claro de que o problema existe", denuncia. Membros da comissão usam bandanas rosa no evento para que sejam reconhecidos e possam receber as denúncias.

Segundo ele, como os ambientes esportivos ainda são muito masculinos, as "brincadeiras" ofensivas são naturalizadas. Para incentivar a conscientização sobre o tema, a LAL (Liga das Atléticas de Londrina) selecionou pessoas de diversos cursos, sejam elas brancas ou pretas, homens ou mulheres, heterossexuais ou pessoas LGBT, para garantir representatividade e diversidade na tomada de decisões. Além disso, a comissão funciona como um "porto seguro" para que as possíveis vítimas possam denunciar abusos e receberem acolhimento. A iniciativa tem apoio da clínica de psicologia da UEL.

A estudante de relações-públicas Lanah Stievano Consolini joga handebol pela atlética Ascof, do Ceca (Centro de Educação, Comunicação e Artes), e participa da
comissão por não concordar com o machismo no ambiente esportivo. "O assédio é comum e naturalizado. As meninas estão jogando e os homens ficam reparando nos shorts, nas características físicas. Ninguém quer saber se jogamos bem ou o quanto nos esforçamos nos treinos. O esporte feminino nunca foi valorizado", aponta.

Consolini destaca que o ambiente das competições é hostil para as mulheres. "Nunca ficamos despreocupadas", lamenta ela, que não aceita a naturalidade com que comportamentos ofensivos e machistas são recebidos. "É um reflexo da cultura machista achar que na torcida vale tudo", denuncia.

Entre as atletas que participam de jogos universitários, não faltam relatos sobre assédio e ofensas machistas. Por isso, as alunas da Atlética V de Outubro, dos cursos de letras, filosofia, história e ciências sociais da UEL, criaram o grupo "Cangaceiras", uma diretoria cujo objetivo é fiscalizar e receber denúncias de machismo, racismo e homofobia durante os jogos.

Laura Grosso, 19, aluna do primeiro ano de ciências sociais da UEL, sempre jogou vôlei e, nos JIA, disputa pela atlética nas modalidades de praia e de quadra. Convicta da necessidade de coibir comportamentos abusivos, ela denuncia que nos últimos jogos que disputou, o Calouro UEL, ouviu em jogo contra o time de medicina "coisas horríveis e que atrapalham muito".

Beatriz Silva, 20, do segundo ano de ciências sociais, também faz parte do grupo "Cangaceiras". Ela conta que as atléticas são estigmatizadas por muita gente que acredita serem organizações machistas e LGBTfóbicas, mas que acha fundamental a "recepção e integração" que proporcionam. "Não teria metade dos amigos que tenho na UEL. É muito importante", define Grosso, que afirma que as integrantes recebem total apoio e autonomia dentro da diretoria para atuar contra essas discriminações. O Cangaceiras, que conta com aproximadamente dez meninas, não tem uma diretora ou líder e atua de forma horizontal. O objetivo principal é fiscalizar e tornar o ambiente seguro para mulheres durante os jogos.

É preciso prevenir, mas se isso não evitar que o preconceito apareça, elas disseram ter liberdade para lidar com o que acontecer e para punir conforme artigos do estatuto da LAL. "Primeiro, no caso de assédio ou agressão verbal, a gente conversa e avisa; se acontecer de novo, é expulsão. Se for agressão física, é expulsão direto."

Bianca Cavalieri, PM e graduada em direito pela UEL, joga basquete e vôlei e relatou que alunas dos cursos de direito da UEL e da UFPR criaram uma página chamada "Jogos Sem Assédio" (https://www.facebook.com/JogosSemAssedio/) para lutar contra esse problema. Nos Jogos Jurídicos deste ano, elas fizeram uma camiseta com os dizeres "Jogue como uma mulher" e "#jogossemassédio" para conscientizar e expor a existência do machismo nos jogos.

"A ideia era usar durante os jogos, mas, principalmente, durante o aquecimento, quando daria mais visibilidade para a camiseta e, por consequência, para a causa nela estampada", diz Cavalieri. Segundo ela, o impacto aconteceu. "A tendência é cada vez mais minas empoderadas nos jogos."

Na opinião da PM, "quando a gente dá visibilidade a algo, ele passa a existir". E completa dizendo que os meninos passaram a prestar mais atenção em como falavam com as meninas, o que foi positivo e elogiado por todos, "independentemente do gênero".

Para denúncias sobre comportamentos ofensivos durante os JIA: (43) 9 9186-6370 (WhatsApp)

"Quando entram os calouros e começam a falar das meninas ou chamá-las de gostosas, eu chamo e falo: ‘escuta aqui, isso não pode, tá errado’", revela Lívia Avancini
"Quando entram os calouros e começam a falar das meninas ou chamá-las de gostosas, eu chamo e falo: ‘escuta aqui, isso não pode, tá errado’", revela Lívia Avancini



‘Machismo restringe participação feminina’
Vôlei, handebol e atletismo são os esportes que Lívia Avancini, 25, pratica. Além de treinar e ser personal trainer em academias. Educadora física formada pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), desde os seis anos de idade ela está no meio esportivo. E não demorou para perceber que era um meio machista e que os esportes têm uma divisão implícita de quem pode jogá-los ou praticá-los.

Dos seis aos 12, jogou vôlei; dos 12 aos 15, mudou para o arremesso de peso e se profissionalizou. Com a profissionalização, foi morar em São Paulo para treinar, viajou para competir, conheceu lugares, culturas, pessoas e começou a ganhar seu próprio dinheiro. Hoje ela é vice-campeã brasileira na modalidade, terceira no Sul-americano e ficou perto de disputar a Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro.

Ela conta que começou no atletismo por uma questão de estética, pois "era meio gordinha", e que essa mudança levou à sua independência. Apesar de ter entrado por essa preocupação com a aparência, ela critica quem liga mulher e esporte a "símbolo sexual, gostosa" e pensa que é apenas para isso que elas praticam esportes, pois dizem que elas não podem ter corpo musculoso, "de homem".

Mesmo com 1,87m de altura, ela nunca entrou em uma briga, mas sempre faz questão de falar com os atletas. "Quando entram os calouros e eles vão treinar e começam a falar das meninas ou chamá-las de gostosas, eu chamo e falo: 'escuta aqui, isso não pode, tá errado'. E vou politizando eles". Por causa de seu tamanho, ela diz que não teve muito problema com posturas machistas em sua frente, mas sabe que é algo que existe.

Lívia diz que sempre teve sua posição pessoal muito bem definida e que não esconde de ninguém quem é. "É preciso se respeitar e mostrar quem somos." No ano passado, no JIA (Jogos Inter Atléticas) ela escreveu "Vai Sapatão" em sua camiseta para que, assim, quando alguém tentasse a ofender com isso, "estaria só chamando pelo seu nome".

Seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) foi sobre "A mulher atleta: gênero e preconceito". Segundo a atleta, o estudo e a pesquisa sobre o tema a fizeram abrir mais a cabeça e repensar casos da sua carreira nos quais ela havia passado por alguma situação machista, mas acabou achando que era normal, natural, e não uma discriminação.

A atleta londrinense diz que o machismo restringe a participação das mulheres não apenas no esporte, mas em todos os ambientes. Para exemplificar, cita o caso de homens cabeleireiros serem tachados de gays. "Faz sentido uma mulher que é vice-campeã brasileira de arremesso de peso ser impedida de competir por esse esporte ser mais físico e masculinizado que o vôlei, por exemplo, que ela joga já há quase 20 anos e que abriu as portas para ela?", questiona.(G.B.)

CCH cria comissão para coibir assédio
O assédio contra as mulheres se tornou tão naturalizado no ambiente universitário que o departamento de história da UEL (Universidade Estadual de Londrina) criou uma comissão específica para prevenir e coibir esse tipo de violência contra as alunas. Fundada no início de 2017 a partir de uma denúncia de assédio em um trote, quando um aluno do curso de história teria tentado beijar uma moça à força, a Comissão de Prevenção à Violência Sexual hoje é formada por cinco professores, três alunos e uma professora do Sebec (Serviço de Bem-Estar à Comunidade) e representa todo o CLCH (Centro de Letras e Ciências Humanas).

"Percebemos que os trotes tinham assédio, constrangimento e violência, até mesmo através dos leilões de calouros. Essa prática constrangia principalmente as meninas, inclusive as gordas ou fora do 'padrão de beleza', que só recebiam lances de centavos. As alunas eram colocadas no lugar de objeto", conta Edméia Ribeiro, coordenadora da comissão, professora do departamento de história e responsável por ministrar a disciplina optativa "História e Gênero" na universidade.

A comissão fez uma intensa campanha contra o assédio na semana de recepção de calouros, com cartazes, folders e palestras sobre o assunto. Além disso, está à disposição da comunidade universitária para receber e encaminhar denúncias, além de acolher as vítimas. Quando necessário, elas são atendidas pelo Sebec, que apoia a iniciativa. A ideia é criar um protocolo de atendimento e, a longo prazo, estender a medida para outros centros.

Fora dos domínios do CLCH, inclusive nos eventos esportivos universitários, a professora aponta que o assédio contra as mulheres continua naturalizado. Segundo ela, neste ambiente específico, o machismo tem explicações históricas e sociológicas. Perante a sociedade, o esporte faz parte do espaço público, para onde os homens são criados. As mulheres, ao contrário, ainda são criadas para o ambiente privado, materializado pela casa.

"Os meninos são incentivados a andar de skate, jogar bola, brincar com carrinhos e são reconhecidos pela destreza, agilidade e força. Já as meninas são ensinadas a ficar em casa brincando com bonecas, panelas e fogões. Não precisam nem mesmo de outras crianças para brincar. São ensinadas a ficarem sozinhas e caladas. Todo o universo das meninas cabe no espaço do quarto delas", diz.

Quando elas crescem e saem desse papel, ocupando um espaço considerado masculino - como o dos esportes -, a presença agride. "Isso explica porque os ambientes esportivos são tão hostis às atletas do sexo feminino", reforça. A pesquisadora observa, também, que enquanto as meninas estão se emancipando pelo feminismo - considerado por ela um dos movimentos mais revolucionários e libertadores desde o fim do século 19 -, os garotos não estão sendo ensinados a compreender e aceitar a igualdade entre os gêneros. "A forma como os homens são educados não é libertadora. O feminismo formou as mulheres, mas tocou poucos homens", analisa.

Ela aponta que o contexto perpassa toda a universidade. A própria pesquisadora conta que, ingenuamente, acreditava que o ambiente universitário seria um ambiente "das luzes", onde as pessoas estariam interessadas em aprender e se tornar melhores seres humanos. "Na verdade, é um pedacinho do que é a sociedade e todos os seus preconceitos", diz ela, que lamenta o fato de comportamentos machistas, LGBTfóbicos e racistas se tornarem cada vez mais naturalizados. "Estamos sendo massacrados pela mentalidade reacionária e por discursos 'antigênero'. É uma época de retrocessos, em que algumas pessoas lutam para que outras não tenham conquistas e direitos", denuncia.(C.A.)