Pela legislação atual, o aborto é permitido quando a gestação apresenta riscos para a mãe e em casos de estupro
Pela legislação atual, o aborto é permitido quando a gestação apresenta riscos para a mãe e em casos de estupro | Foto: Shutterstock



O julgamento de um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF) na última terça-feira (29) causou polêmica entre favoráveis e contrários à descriminalização da prática do aborto. Na decisão, médicos e enfermeiros denunciados pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro pela suposta prática do crime (com o consentimento da gestante) e formação de quadrilha responderão ao processo em liberdade. Os acusados trabalhavam em uma clínica de aborto clandestina e foram presos em flagrante em 2013. O grupo conseguiu liberdade provisória meses depois e foi detido novamente após recurso apresentado ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Em 2014, o STF revogou a prisão e, nesta semana, foi a julgamento o mérito do pedido de habeas corpus.
Além de discutir o caso específico, os ministros debateram a descriminalização do aborto. Com base na garantia de direitos sexuais e reprodutivos da mulher e na igualdade de gênero, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu que a prática poderia ser descriminalizada até o terceiro mês de gestação. "Durante esse período, o córtex cerebral, que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade, ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno", argumentou. "É possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas", complementou.
A discussão realizada no STF não alterou a legislação em vigor, mas já despertou reações contrárias e favoráveis ao voto do ministro. Para a Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR), o ponto de vista defendido representou um avanço em relação aos direitos das mulheres. A presidente da comissão, Sandra Lia Barwinski, destacou que as divergências são naturais, já que há aspectos legais e e concepções religiosas e morais envolvidas. "É uma decisão de foro íntimo dela. O aborto está entre os direitos sexuais e reprodutivos e um dos fatores que se coloca é que nós precisamos estabelecer a equidade de gênero. […] Não é uma questão de ser contra ou a favor. O aborto precisa ser evitado, mas quando uma mulher precisar e tiver a necessidade de abortar, o que precisa se garantir é que esse aborto seja feito em condições seguras", avaliou ao lembrar das mulheres que se submetem a procedimentos clandestinos.
Para o pediatra e presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Luiz Ernesto Pujol, o debate sobre o tema é sempre válido. Além da criminalização expressa no Código Penal, o Código de Ética Médica também veda a prática do aborto. "O mundo muda, os valores estão mudando também, a medicina, a sociedade, a ética e a bioética têm que acompanhar a sociedade, mas isso requer uma discussão e um amadurecimento de muitas situações. Há prós e contras com argumentos que dão nó na cabeça da gente, mas temos que discuti-lo", afirmou.
"A ciência médica comprova que a vida acontece no momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo. […] A ciência filosófica diz que a vida começa quando você tem sentimentos, cognição e é capaz de interagir. […] A religião diz que, no momento em que houve a fecundação, é uma vida que não pode ser interrompida mesmo que ela evolua para uma situação de capacidade de não sobrevida após o nascer, que são os anencéfalos. […] Tudo isso é discutível. Não existe absolutamente certo ou errado, vai das nossas convicções. Contudo, a decisão de uma gestante tem que ser respeitada", ponderou.
Pela legislação atual, o aborto é permitido quando a gestação apresenta riscos para a mãe e em casos de estupro. O STF também já autorizou a interrupção da gravidez em casos de anencefalia. A presidente do Movimento Nacional da Cidadania Pela Vida, Lenise Garcia, considerou inadequado o debate sobre o aborto em meio à discussão específica do caso ocorrido no Rio de Janeiro. Ela criticou o argumento utilizado pelo ministro para defender a descriminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação. "Biologicamente falando, o feto vai desenvolver um córtex cerebral porque está vivo e porque é humano. Se fosse uma minhoca ou uma pedra, o córtex não se desenvolveria. Então eu não posso considerar que só é humano depois que ele se desenvolve totalmente. O ministro está invertendo causa e efeito", defendeu. A organização não governamental é composta por líderes religiosos, juristas, cientistas e representantes da comunidade.
Lenise reforçou que "em qualquer livro de embriologia, a vida começa na fecundação" e que nem sempre a escolha pelo aborto representa a liberdade e a autonomia da mulher. "São pessoas que estão no desespero ou são pressionadas pelos companheiros e não veem outra saída", explicou. O movimento defende a continuidade da gestação mesmo nos casos de estupro. "O aborto não pode ser tratado como se essa fosse a melhor saída. […] O aborto não a protege. O aborto protege o estuprador", argumentou.
Para a presidente do movimento, a alteração da lei poderia banalizar a prática. "Em algum momento, a mulher se dá conta de que matou um filho. Ela tira do útero, mas não tira nem da cabeça e nem do coração. Isso marca muito a vida da mulher. A ideia de que o aborto elimina o sofrimento não corresponde a realidade", afirmou. O movimento aposta no trabalho educativo para a valorização da vida e a conscientização da existência humana.