SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Longas horas longe de casa e vários projetos de pesquisa conduzidos simultaneamente. Cientistas brasileiros que encabeçam as pesquisas relacionadas ao novo coronavírus relatam um aumento drástico no volume de trabalho e mudanças na dinâmica dentro dos laboratórios de pesquisa.

“Nunca trabalhei tanto, mas também nunca tive tanta satisfação”, diz Lucio Freitas-Júnior, pesquisador no Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP). No dia 27 de março, o pesquisador teve acesso ao novo vírus, e desde então as folgas se tornaram raridade.

Freitas-Júnior lidera uma equipe que testa cerca de 4.000 compostos por semana para verificar o potencial de atuar contra o vírus em células de macaco. “Testamos de tudo, sem preconceito nenhum. Temos de ter humildade para dizer que a gente não sabe nada sobre esse vírus ainda. Tem que ter a cabeça aberta”, afirma.

O pesquisador, que tinha um estudo em andamento sobre febre amarela, passou por um treinamento para ocupar um laboratório com um nível de segurança mais alto, usado para investigar doenças ainda sem tratamento ou que são transmitidas pelo ar ou por gotículas de saliva —caso da Covid-19.

“Todo o procedimento para entrar e sair do laboratório é muito rigoroso, e isso dificulta a pesquisa. É exaustivo”, conta. As horas gastas em laboratório são subtraídas do tempo que o pesquisador tem para passar com a família, o que o obrigou a fazer videoconferências de dentro do laboratório para interagir mais com os filhos. “A gente tem que se virar e não pode aceitar o não, tem que fazer funcionar”, diz Freitas-Júnior.

A médica infectologista Nancy Junqueira Bellei, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), está envolvida em dez projetos de pesquisa relacionados ao novo coronavírus; em quatro deles ela é a pesquisadora principal.

Ela diz que a falta de verba para a pesquisa deixou de ser um problema. “Estávamos com muita dificuldade para conseguir dinheiro e, de repente, ele se tornou disponível devido à pandemia”, diz Bellei.

Editais de apoio à pesquisas que busquem soluções contra a pandemia vêm sendo publicados pelas agências de fomento à ciência. A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), uma das principais financiadoras da pesquisa científica no país, lançou, no início de abril, o Programa de Combate às Epidemias, que vai investir R$ 200 milhões nos próximos quatro anos em estudos da Covid-19.

A sobrecarga dos cientistas aumenta também com a leitura de artigos, publicados em grande volume e velocidade, e o discernimento necessário para filtrar os bons estudos.

“No mundo todo, há uma corrida para pesquisar os mais diversos aspectos dessa infecção, desde a pesquisa básica sobre o vírus até as drogas que podem combatê-lo. É tanto artigo que falta fôlego. Temos que fazer tudo com seriedade para não jogar o dinheiro fora e não usar um recurso que não vai render”, afirma.

Entre atendimentos de urgência em seu consultório próprio, visitas a pacientes no Hospital Universitário da Unifesp, procedimentos no laboratório de pesquisa, reuniões —e um almoço às pressas no corredor— a médica passa cerca de 12 horas por dia no trabalho. E há mais um pouco de atividade nos finais de semana. “É muito difícil pensar em outra coisa que não seja coronavírus”, afirma Bellei.

No Instituto Butantan, os esforços de quase toda a instituição foram direcionados para o combate ao coronavírus. Devido às medidas de distanciamento social para conter a expansão da doença, a frequência nos laboratórios precisou diminuir, o que faz com que o tempo gasto lá dentro seja ainda mais precioso, segundo Renato Astray, pesquisador do instituto no Laboratório Multipropósitos.

Astray também é o responsável pelas medidas de contingência no Butantan. O instituto funciona com cerca de 40% dos funcionários e pesquisadores, segundo ele. “Precisamos continuar produzindo vacinas e soros, e precisamos impedir que a doença se dissemine dentro do instituto”, afirma. “Trabalhamos todos os dias da semana, mais horas do que o normal."

No meio desse turbilhão trazido pela pandemia, a cooperação entre cientistas de diferentes laboratórios e universidades cresceu, o que anima os pesquisadores.

“Não existe um projeto sequer de um único pesquisador de uma única unidade ou universidade. Vários estudantes de pós-graduação se candidataram para ajudar. Todo mundo está trabalhando em colaboração, e isso é magnífico”, afirma Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP. “Estamos nos comunicando muito mais do que antes.”

Os cientistas também enxergam no cenário atual uma oportunidade de fazer com que a sociedade retome a confiança na ciência, já que as pessoas recorrem à ela em busca de soluções.

“Fomos muito criticados anteriormente, chamados de parasitas que faziam coisas sem relevância para a sociedade. Mas agora são os cientistas que estão em posição de contribuir”, diz Bruno Diaz, biólogo e diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio Janeiro).

OUTRAS PESQUISAS DESACELERAM

Enquanto as pesquisas sobre o novo coronavírus têm uma explosão no mundo todo, cientistas que trabalham com outras linhas de estudo são obrigados a diminuir o ritmo de suas investigações para cumprir as medidas de distanciamento social durante a pandemia.

As ciências biológicas são particularmente sensíveis a esse novo cenário. Muitos experimentos precisam de cuidados intensivos: há células, substâncias, plantas e animais que dependem de manutenção cuidadosa para não serem destruídos.

“Procuramos manter tudo funcionando no mínimo”, afirma Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP. De acordo com o biólogo, um revezamento de alunos de pós-graduação e funcionários permite que os cuidados sejam mantidos. “Os bichos não podem ficar sem comida, e as plantas precisam de cuidados”, diz.

A situação é parecida no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio Janeiro). Dos mais de 50 laboratórios da unidade, 12 estão envolvidos com o novo coronavírus, segundo Bruno Diaz, biólogo e diretor do instituto. Nos demais laboratórios, há um revezamento para finalizar experimentos que já estavam em andamento e fazer a manutenção de equipamentos.

“Mantemos reuniões semanais com alunos de pós-graduação, mas eles estão ficando mais em casa e lidando com estudo e escrita de trabalhos”, afirma Diaz.

O financiamento individual dos laboratórios que não estão trabalhando com o coronavírus é uma preocupação, segundo Diaz. “O recurso que já é pouco vai adequadamente para responder a essa demanda emergencial de saúde pública. Pode ser que falte dinheiro para outras áreas”, afirma.

Há também preocupação com as pesquisas de estudantes de pós-graduação. Muitos deles recebem bolsas para se manter e vão precisar de flexibilização nos prazos, segundo Gustavo Amarante-Mendes, vice-diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

“Ainda que essa situação permaneça por mais três ou quatro meses, vamos retomar as atividades, a ciência não vai ser interrompida. Me preocupo com os alunos que dependem das bolsas e precisam de material para defender suas teses”, diz Amarante-Mendes.

A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) estão entre as agências que já anunciaram que vão prorrogar as bolsas de pós-graduação concedidas.

No horizonte está ainda uma possível escassez de insumos para os laboratórios. Boa parte do que é usado nas bancadas de ciências biológicas vem de países como China e Estados Unidos, este último o atual epicentro da pandemia.

Segundo Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP, não foi detectada nenhuma falta de insumo até o momento. “Mas se os Estados Unidos, que são os grandes produtores do que usamos, demorarem para fazer sua retomada, podemos ter falta de insumos”, diz.