Imagem ilustrativa da imagem 2016, o ano da virada
| Foto: Fábio Alcover
"Ir à escola é bom demais. Além de aprender, já fiz muitos amigos", comenta Raimundo Madeiro


O ano de 2016 não foi fácil para os brasileiros com os sucessivos sobressaltos gerados pela crise política e econômica. Mas para alguns londrinenses este vai ser lembrado como o ano da virada, da mudança de vida, da retomada das esperanças e do início da realização de sonhos. Eles escolheram o caminho da educação para conduzi-los a novos projetos e a um novo mundo, cheio de possibilidades.

A alguns meses de completar 73 anos, o cozinheiro Raimundo de Souza Madeiro entrou pela primeira vez na vida em uma sala de aula na condição de aluno. Até março, ele só sabia assinar o próprio nome e decidiu que era chegada a hora de avançar no mundo das letras. "Quando criança, no lugar de ir para a escola ia para o mato brincar. Com 8 ou 9 anos aprendi a escrever o nome e nunca mais esqueci. Eu até conhecia cada letra, mas não sabia juntá-las. Aos 18 anos, comecei a trabalhar e não parei mais", conta o cearense de Canindé que veio para a Região Sul em busca de trabalho e de melhores condições de vida.

A leitura e a escrita, garante ele, nunca lhe fizeram falta. Do tempo que viveu em São Paulo, pegava ônibus e metrô sem nenhuma dificuldade. "Nunca errei uma linha", orgulha-se. "E quando eu precisava, os amigos do trabalho me ajudavam. Mas se fosse hoje, saber ler e escrever faria muita falta", reconhece.

Mas já aposentado, um antigo sonho alimentado por ele cresceu tanto que ficou impossível ignorá-lo e a única maneira de torná-lo realidade era o curso de alfabetização. "Tenho o sonho de ler a Bíblia na igreja para todos escutarem porque a palavra de Deus é muito linda, sem Deus ninguém é nada, não importa a religião", atesta. "Tenho duas bíblias em casa, que ganhei em uma rifa na igreja, mas não consigo ler", lamenta Raimundo, que todas as quartas-feiras ele sai do Residencial Vista Bela (zona norte), onde vive, para acompanhar a missa do meio-dia na Catedral Metropolitana de Londrina. Aos domingos, seu encontro com Deus é na igreja do bairro.



Desde março, Raimundo frequenta diariamente as aulas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Municipal Ignês Corso Andreazza, no Conjunto Vivi Xavier (zona norte), das 19 às 22 horas. "Não falto um dia." Hoje, já é capaz de juntar as letras e nelas reconhecer as palavras. Nos livros e cadernos bem cuidados, mostra a caligrafia caprichada, mas revela que são as aulas de matemática que lhe dão maior prazer. "Eu adoro matemática! Já sabia fazer conta na cabeça, mas não sabia sistematizar", explica. "É só ter fé e acreditar que você vai longe. E o conhecimento é uma coisa que ninguém tira de você. Vou continuar estudando enquanto Deus me der força, coragem e saúde."

Raimundo conta que a única humilhação que passou na vida até hoje por não saber ler e escrever foi há mais de dez anos, em uma quermesse, quando precisou de ajuda para marcar os números na cartela do bingo. Uma mulher, ao ouvir sobre a sua dificuldade, debochou de sua situação, dizendo que "um homem tão bonito e elegante não saber ler era uma burrice". O comentário doeu e o magoou. Mas dono de um coração generoso, Raimundo transformou a mágoa em carinho. Prometeu a si mesmo que quando começasse a estudar, daria a sua professora o cordão recebido como prêmio no sorteio. Neste ano, finalmente, pôde cumprir a promessa. "Ir à escola é bom demais. Além de aprender, já fiz muitos amigos. E aos 73 anos, poder aprender tudo o que já aprendi, acho que estou no lucro."

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| Foto: Saulo Ohara
"Ser professor não é chegar lá e dar aula. É transformar uma pessoa dando a ela a oportunidade de ser emancipada", destaca Joelma Lima


NA UNIVERSIDADE
Para Joelma Cardoso de Lima, de 30 anos, 2016 também marca o início dos estudos, mas no ensino superior, como aluna da faculdade de Educação Física na Universidade Estadual de Londrina (UEL). O ingresso no ensino superior representou para ela muito mais que a conquista de uma nova etapa na vida de estudante. Foi o retorno aos bancos escolares após mais de 12 anos longe das salas de aula. Até o início de 2015, Joelma trabalhava como cuidadora de idosos. Ela havia concluído o ensino médio, mas achava que seria muito difícil passar no vestibular e ingressar na faculdade. "Eu não tinha uma segunda língua", conta. Incentivada por uma prima que havia se formado em Biologia a retomar os estudos e a tentar o vestibular, Joelma matriculou-se no Curso Especial Pré-Vestibular (CEPV) da UEL e no início de 2015 localizou seu nome na lista de aprovados da instituição.

Em março, Joelma foi personagem de uma matéria publicada pela FOLHA sobre os aprovados da UEL que passaram pelo CEPV e nesses nove meses, tudo mudou na vida dela, conta. "A faculdade está sendo melhor do que eu esperava. Sempre gostei de jogar futebol e meu foco, quando entrei na UEL, era o esporte." Mas o curso de licenciatura despertou-a para todas as possibilidades que a educação física oferece a quem se dispõe a ser um educador. "Aprendi que o professor é um agente de transformação. Dentro da universidade a mente se amplia. É um divisor de águas no conhecimento", afirma Joelma. "Ser professor não é chegar lá e dar aula. É transformar uma pessoa dando a ela a oportunidade de ser emancipada."

A universidade também permitiu que Joelma deixasse o antigo trabalho e se dedicasse em período integral à vida acadêmica. Em junho, dois meses após iniciar a faculdade, ela conseguiu uma bolsa remunerada para dar aula de ginástica laboral aos servidores da universidade. "Segui os conselhos da minha prima que me falou para eu abraçar tudo o que eu pudesse aqui dentro. Que a universidade era um mundo de possibilidades. E ela tinha razão."

Joelma planeja ingressar em um programa de iniciação científica voltado à área de docência e após concluir a graduação, prestar concurso para professora. Ela diz ainda que a vida na universidade não mudou sua forma de pensar apenas o próprio futuro. Mãe de uma menina de 5 anos, ela já faz planos para a menina, como matriculá-la em um curso de inglês para crianças oferecido pela UEL. "Estou traçando outro futuro para a minha filha."