Sei que nasci lá, e não nasci sozinha, porque desde sempre gosto de companhia e para nascer, um momento tão marcante, vim com um irmão a tiracolo, ou melhor, ele veio com mala e cuia, no caso, eu, causando espanto e surpresa para todos, quando a Dona Hermínia, parteira oficial da cidade, anunciou para minha mãe: tem mais um!

Nesse tempo as minhas lembranças são confusas, a não ser que já era feliz, tinha uma casa, uma janela para a rua de grama, onde costumava passar boiada e todos tínhamos que nos fechar dentro de casa para ver passar. Havia uma janela para um terreno com lírios amarelos; de lá eu olhava o quadro na parede da sala e, sem me deter no retrato que era do meu pai, falecido recentemente, brincava de cinema, enxergando o mundo refletido lá de fora como num filme em cinemascope colorido. Foi nesse mesmo terreno que meu irmão quase "torou" um dedo brincando com a enxada do vovô Mário. E minha irmã caiu num buraco enorme, tipo um poço abandonado, dando um trabalho danado para resgatar.

Lembro-me de um cachorro branco chamado Lulu, de outros filhotinhos escuros com cheiro de nenê, do poço na porta da cozinha, do pé de carambola plantado por minha avó, das suas flores delicadas, da cozinha, da cortina da sala, atrás da qual ela espiava as visitas. Do chão de terra, onde se passava cinza do fogão a lenha para ficar bonito.

Imagem ilustrativa da imagem ( …entre parentes…)



Um dia, por motivos que as crianças não entendem, a gente ia se mudar para outro lugar. Apesar de muito pequena, imaginava a mudança num caminhão grande, levando nossas camas e...o cachorro bem amarradinho para não cair, nós em cima da carroceria abanando as mãos para os vizinhos e parentes, todos invejosos da nossa mudança.

Mas não foi bem assim. Arrumamos as coisas: algumas malas daquelas bem duras, uma latinha de bolachas Aimoré, levada pelo meu irmão, frango e farofa para comer na viagem, embrulhados cuidadosamente em panos de prato, como era costume. A separação de duas pessoas especialmente queridas que disfarçavam o choro, talvez para não nos preservar: meus avós Mario e Luiza.

Depois de chegar à Londrina ou à Rolândia, não sei bem, continuamos a viagem, agora de trem. Olhávamos para a janela encantados, enquanto minha irmã mais velha nos segurava com medo de nos perder. A cada estação minha mãe descia e nós ficávamos aflitos com medo do trem partir e ela ficar. E gritávamos: "Maquinista, espera minha mãe"!

Chegamos numa cidade diferente, demoramos um pouco para nos acomodar numa casinha, até aí estávamos em casa de tios e avós. Recordo o casamento do tio Alonso quando eu entrei, pela primeira vez, num lindo automóvel preto, do primo Afonso.

Na cidade de Taiaçu, interior de São Paulo, fiquei em repouso absoluto por problemas renais. Diziam que era a água da cidade que causava esse mal porque era salgada. Nessa fase minha irmã mais velha cuidava de mim, enquanto a outra só fazia artes em companhia do meu primo Wilson Gonçalves.

Tendo que ficar de cama, queria ouvir histórias e ter companhia o tempo todo. Na escassez de tudo, inclusive de livros, tinha um que, de tanto repetir, eu já havia decorado: " A pequerrucha", algo parecido com o Pequeno Polegar.

E algum tempo depois... A volta para a minha cidade querida, meus avós amados, a casinha que minha mãe havia comprado do Cambota, um homem baixinho, negro, encantador, conversador, e que tinha canários; uma casa tão pequena e tão singela que não sei como cabia tão grandes emoções. O quintal que eu ia explorando aos poucos com aqueles enormes pés de jaca, o poço na sua sombra, os vizinhos tão queridos e tudo de bom!

Felicidade, eu estava, novamente, em casa! Aí, sim, começava a viver...

Estela Maria Frederico Ferreira, leitora da FOLHA