O mercado imobiliário cria desejos que acabam incorporados pelas construções, como é o caso dos home theaters e das cozinhas gourmet
O mercado imobiliário cria desejos que acabam incorporados pelas construções, como é o caso dos home theaters e das cozinhas gourmet | Foto: Fotos: Shutterstock



Nos romances do século 19, os personagens de clássicos da literatura brasileira transitavam entre cômodas, marquesas, conversadeiras, aparadores, castiçais, leitos envoltos em cortinas e outros móveis e peças de decoração que remetem a um tempo em que a vida doméstica implicava em passar longos períodos em casa. Machado de Assis e José de Alencar, entre outros nomes consagrados, descreveram com maestria a rotina de um tempo em que os alimentos eram todos preparados nas residências, as roupas eram feitas em "quartos de costura" e as crianças estudavam em salas de estudo, que se diferenciavam da biblioteca e do gabinete onde homens fechavam negócios.
A realidade era muito diferente das casas atuais, onde a tecnologia ganha espaço em todos os ambientes da vida privada, seja no home theater, na cozinha gourmet ou nas suítes equipadas com tomadas e rede de wi-fi.
"A moradia evolui ao longo do tempo, à medida em que mudam os sistemas sociais, a tecnologia e o modo de vida das pessoas", explica o arquiteto e urbanista Ricardo Dias Silva, professor e chefe do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Imagem ilustrativa da imagem A mudança das casas



Ele pontua que há um século, por exemplo, a população era eminentemente rural e vivia em casas bem diferentes das atuais residências urbanas. "As cozinhas eram mais generosas, pois era comum matar animais e preparar alimentos que hoje compramos prontos, como farinha. Muitas casas tinham duas cozinhas, uma delas fora de casa, onde eram realizadas as preparações com mais impacto", conta. Como os moradores trabalhavam no campo, tinham o hábito de se lavar antes de entrar em casa. "Por isso havia um espaço para higiene do lado de fora", explica.
A história também determina mudanças no jeito de viver das famílias. No período entre as guerras mundiais, as mulheres ganharam o mundo do trabalho para substituir os homens que estavam nas trincheiras. Ao deixarem o espaço da vida privada, passaram a buscar formas de otimizar o trabalho doméstico, o que provocou mudanças nas casas, que passaram a ganhar praticidade, inclusive através de eletrodomésticos que ganharam espaço na organização doméstica. "A diminuição das famílias é outro fator que influencia a arquitetura. Hoje, as residências são mais compactas porque acomodam menos pessoas", compara.
Silva destaca que em meados do século 20 as famílias se reuniam para ouvir rádio na cozinha, onde a mãe cozinhava e os filhos aproveitavam a mesa para fazer tarefa. Com o advento da televisão, o espaço de convivência passou para a sala de estar. "Atualmente as pessoas estão reduzindo a convivência nas áreas sociais para se dedicar ao uso de tecnologias como tablets e smartphones em espaços individuais. Neste contexto, os quartos passam a ser mais valorizados, inclusive com investimento em suítes", diz.
Os materiais de construção são outro fator de influência no jeito de morar de um povo. No Norte do Paraná, por exemplo, o material mais viável na época da colonização era a madeira de altíssima qualidade, ainda presente em casas construídas no período. "Essas residências tinham características bem particulares, com beirais generosos e estruturas que não encostavam no chão para evitar umidade. Quando acabou a madeira, passou-se a construir em alvenaria. Em seguida investiu-se em concreto armado, até por influência do desejo de modernização das cidades", relata.
O professor também pondera que o mercado imobiliário cria desejos que acabam incorporados pelas construções, como é o caso das cozinhas gourmet ou mesmo dos home theaters. Defende ainda que a mudança necessária em termos de urbanização é aprender a viver de forma mais harmônica em espaços de convivência coletivos. "Precisamos de cidades mais abertas", pede.