Imagem ilustrativa da imagem A amiga sorte
| Foto: Gustavo Carneiro
"Foi pura sorte até porque não poderíamos prever se a cola seria tóxica ou se haveria infecção", diz Francisco Gregori Junior, cirurgião-cardíaco que entrou para a história ao colar o coração de uma paciente com Super Bonder



Alguns acreditam que se trata da ação de Deus. Outros que é pura sorte. Fato é que existem janelas de oportunidades, que podem fazer a diferença em situações cruciais ou corriqueiras da vida, que certas pessoas sabem aproveitar. As histórias desta reportagem mostram que a sorte é lançada no dia a dia. Não é preciso ganhar na loteria acumulada para se sentir um sortudo.

Por mais espetacular que pareça, o relato a seguir – que ganhou repercussão mundial, entrando para a história da medicina – talvez não tivesse se desenrolado da maneira como aconteceu se não fosse um episódio doméstico anterior.

Os personagens em questão são o médico Francisco Gregori Junior, 69, e a paciente Joana Messas Woitas, que em 1997 teve o coração colado com Super Bonder pelo cirurgião-cardíaco. O feito inédito, considerado medida heroica pela medicina, está completando 20 anos. Joana morreu aos 82 anos, em 2011.

Ateu do terceiro ano de faculdade aos primeiros 15 anos de carreira – até que outro episódio relatado nesta reportagem mudasse a sua crença –, Gregori acredita na ação de Deus e na participação da sorte no dia a dia.

"Não creio que sou uma pessoa iluminada, mas a minha especialidade propicia situações em que a presença de Deus é mais sensível. Além disso, acredito que tenho muita sorte. Um professor meu dizia que, quando a gente persiste em um determinado atendimento, mais sorte teremos de tirar um paciente de uma situação crítica", ressalta o cirurgião, autor de sete técnicas inéditas em cirurgia de válvulas cardíacas e arritmias, criador do Anel de Gregori, da prótese Braile-Gregori.



O médico comanda uma equipe que já realizou mais de 35 mil procedimentos cirúrgicos cardíacos. Atualmente, ocupa o primeiro lugar em volume de cirurgia no Paraná e Região Sul do Brasil e a terceira colocação entre as mais de 300 equipes no País.

Nascido em Bocaina (SP), formado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, em 1971, o encontro de Gregori, Joana e a sorte se deu num dia 21 de março, que tinha tudo para ser como tantos outros.

Foi quando a aposentada deu entrada no centro cirúrgico do Hospital Evangélico com um quadro de infarto do miocárdio. Os médicos não conseguiram controlar uma hemorragia do orifício do ventrículo esquerdo. Depois de tentar a sutura por mais de uma hora, não havia o que fazer, já que os tecidos de uma parte do coração estavam mortos, esfacelando-se. A equipe se preparava para desligar os aparelhos.

"Aí a sorte agiu. Lembrei de um episódio que havia ocorrido uma semana antes. O meu filho, que na época, tinha seis anos, colou os dedinhos com a cianoacrilato, a conhecida supercola. Levamos o garoto ao hospital e houve muita dificuldade para descolar. Ao me lembrar do fato, pedi para buscarem a cola no posto de combustíveis, que fica na esquina do hospital. Aplicamos o produto na paciente. Quando fomos retirar a mão, a luva ficou grudada no manchão e tive que cortar com tesoura para extrair. Foi pura sorte até porque não poderíamos prever se a cola seria tóxica ou se a paciente poderia ter uma infecção", lembra Gregori. Uma semana depois, Joana deixou o hospital. O procedimento heterodoxo somente se tornou conhecido da família e, mundialmente, um ano depois.

'Fui ateu, mas voltei para Deus'

Ciência da prática, do diagnóstico, do tratamento e da prevenção, a Medicina não espera notícias da sorte, mas outras janelas de oportunidades se abrem na frente dos profissionais, desafiando tudo o que aprenderam com a experiência.

"Fui ateu, mas voltei para Deus quando operei um garoto de cinco anos de idade, que levou um tiro no tórax de outra criança, com perfuração do coração, estômago, fígado e rins. A criança entrou no hospital carregada pelos avós, com morte cerebral. Nunca me surpreendi com uma situação deste tipo. Abri o tórax com um bisturi que estava em cima de uma pia, sem luva e nada. A bala perfurou o ventrículo esquerdo. Quando abri o saco pericárdico, o coração voltou a bater. Antes de iniciar os procedimentos, outro médico havia dito que o quadro era irreversível. Com o tórax aberto, suturei o coração e a criança foi encaminhada ao centro cirúrgico para corrigir outras lesões. Nunca havia visto isso. No mesmo dia, a filha de um jornalista da Folha de Londrina, Edilson Leal, chegou em choque ao hospital, quase que simultaneamente, depois que um trator passou em cima do abdômen da criança. Foi operada durante muitas horas. Em poucos dias, os dois pacientes estavam em casa", lembra o cirurgião.

O limite do possível também é extrapolado pela determinação do médico que, para salvar um paciente, já ficou mais de 50 horas em uma sala de cirurgia. Toda a equipe se revezou, exceto Gregori.

"Peço a Deus todos os dias. Não durante os procedimentos porque estou com a cabeça ocupada no que fazer. Os pedidos a Deus devem ser feitos com a cabeça no travesseiro", conclui. (F.L.)