"A morte é o deixar de ser. Passadas algumas gerações, os laços afetivos desaparecem e você deixa de existir para a família. Daí a importância da preservação histórica", diz Clarissa Grassi
"A morte é o deixar de ser. Passadas algumas gerações, os laços afetivos desaparecem e você deixa de existir para a família. Daí a importância da preservação histórica", diz Clarissa Grassi | Foto: Edgard Marques /Divulgação



Uma relações públicas da "necrópole dos vivos". A graduação da pesquisadora, idealizadora das visitas guiadas ao Cemitério São Francisco de Paula de Curitiba e presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (Abec), Clarissa Grassi, serviu de ponto de partida para uma trajetória de resgate e preservação histórica e cultural da Curitiba póstuma. Tudo começou com a missão de produzir um material institucional para uma funerária, ainda como relações públicas. De lá para cá são 14 anos de estudos, três livros publicados, uma dissertação de mestrado e, desde 2014, a democratização de todo esse conhecimento por meio do serviço oferecido ao público que visita o cemitério mais antigo da capital.

"As visitas guiadas são a realização de um sonho após tantos anos de pesquisa. Acredito que elas são um poderoso instrumento para desmistificar a morte, valorizar a vida e garantir a preservação desses espaços, sabidamente vandalizados", defende Clarissa. "Não existe patrimônio sem pertença. De maneira indireta, todos que participam de uma visita guiada se dão conta de que vão morrer e por isso mesmo podem investir melhor o tempo que possuem. Além disso, eles criam laços com a preservação desse espaço a partir do conhecimento sobre as histórias de quem aqui foi enterrado, bem como da riqueza artística e cultural encontrada nos milhares de túmulos do Cemitério São Francisco de Paula", aponta.

Como bem definiu Clarissa no título de sua dissertação de mestrado – Cidade dos mortos, necrópole dos vivos: a Curitiba do Cemitério São Francisco de Paula – , espaço de 51.414m², com 139 quadras, 5.743 túmulos e mais de 80 mil sepultamentos realizados reúne um acervo impossível de ser visitado em um único passeio. A solução foi organizar uma visita geral e outra temática por mês para dar conta de tanta história.

"Embora o cemitério reverbere todas as mudanças da sociedade, as transformações na cidade dos mortos se dá de uma forma mais lenta. O Paranismo é um bom exemplo. Enquanto em vários jazigos ou mausoléus daqui é possível encontrar os ícones do movimento cultural, a sede do movimento não existe mais na cidade, foi demolida", explica.

A próxima visita temática será no dia 13 de maio, das 9h às 12h, e resgatará a histórias dos negros enterrados. "A Enedina Alves Marques, primeira engenheira mulher e negra, tem uma história que não pode ser esquecida. Ela, assim como tantos outros que pesquisei, representam uma das partes mais fascinantes desse trabalho que é conhecer o triunfo do homem sobre as condições adversas de um determinado tempo. Isso não pode ser perdido", enfatiza.

Clarissa também recomenda aos visitantes reservarem um tempo para circularem pelo local sem guia. "Não existe conhecer tudo. O que vejo aqui dentro é o que meu olhar está disposto a conhecer naquele dia e acho que todo mundo pode ter uma experiência riquíssima ao se permitir perambular pela cidade dos mortos".

Memória
A pesquisadora fala com propriedade ao propor uma relação menos traumática com a morte, já que sua primeira memória em um cemitério foi aos 8 anos de idade, quando faleceu sua avó Clara Isabel Neumann Grassi. "Ela ficou nove meses de cama e todo o processo de doença e morte foi abordado com muita naturalidade pela minha mãe. Acho que isso ajudou. Tanto que lembro exatamente do dia, da tristeza que senti misturada a uma serenidade que sempre encontrei nos cemitérios", descreve Clarissa, complementando que o túmulo da avó dela está no São Francisco de Paula.

Clarissa, no entanto, defende integralmente a importância de se permitir viver o luto e sentir toda a dor do momento. "As pessoas não sabem mais elaborar o luto, procuram calmantes e acho que isso pode ter consequências na frente com doenças como depressão", observa.

Ciente de que a morte "é o que de mais inevitável existe", ela transforma essa certeza em uma ferramenta para "viver melhor". Apesar do fascínio por arte tumular e conviver com tantas construções suntuosas espalhadas pelo Cemitério São Francisco de Paula, Clarissa não nutre qualquer aspiração pelo local onde ficarão seus restos mortais. "Aos meus familiares sempre falo que quero a escolha mais barata", explica.

Incansável e devota feito uma guardiã da memória da cidade póstuma, Clarissa - que desde o início do ano foi chamada para trabalhar como pesquisadora no Departamento de Patrimônio Cultural de Curitiba - tem planos de conseguir estender as visitas guiadas a outros cemitérios e concluir um levantamento sobre todos os túmulos do Cemitério São Francisco de Paula, a fim de que a lei municipal de tombamento enfim seja aplicada.

"A morte é o deixar de ser. Passadas algumas gerações, os laços afetivos desaparecem e você deixa de existir para a família. Daí a importância da preservação histórica, para não perdermos a memória de nossos antepassados", observa.