O oftalmologista Arthur Buffara van den Berg: "Encontramos índios com catarata total e a cirurgia devolveu-lhes a condição de poder andar na mata e caçar"
O oftalmologista Arthur Buffara van den Berg: "Encontramos índios com catarata total e a cirurgia devolveu-lhes a condição de poder andar na mata e caçar" | Foto: Ricardo Chicarelli



No sobrevoo pela imensidão verde da Amazônia, antes da aterrissagem, os médicos da organização humanitária Expedicionários da Saúde (EDS) já têm ideia do que os espera para levar atendimento cirúrgico aos povos indígenas. O oftalmologista londrinense Arthur Buffara van den Berg, 34, integrou a recente 38ª expedição. O que lhe chamou mais a atenção foi a maneira como os índios do Alto do Rio Negro se entregam à equipe. Uma viagem com potencial de transformar a visão pessoal sobre questões indigenistas latentes – desde que os profissionais atrevessem as fronteiras da não menos importante ajuda humana.

"Para os índios a nossa presença era muito estranha. Chegamos com equipamentos sofisticados, montamos uma tenda de guerra para os atendimentos. Nos apresentávamos a eles, com as tradicionais máscaras cirúrgicas, parecendo que tínhamos saído de uma nave espacial. Acredito que a nossa imagem mais do que despertar confiança, era assustadora. Apesar disso, os índios confiavam plenamente em nós", conta van den Berg.

A trajetória do médico londrinense até chegar a esta nova experiência na selva passa por três gerações de oftalmologistas. O pai e o avó, ambos Arthur, também têm em suas histórias capítulos dedicados à especialidade.

Aos 17 anos, o jovem saiu de Londrina para fazer cursinho em São Paulo e, depois de uma residência na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP), voltou para Londrina, onde se dedica especialmente ao tratamento de catarata e glaucoma.

Van den Berg já conhecia o trabalho dos EDS, organização com base em Campinas (SP). Ao participar de um congresso de oftalmologia na Flórida (EUA), em dezembro de 2016, encontrou alguns amigos, integrantes do grupo, e recebeu o convite para fazer parte da equipe de uma expedição, embarcando dia 24 de março, com retorno em 2 de abril deste ano.

A organização humanitária foi fundada em 2003. Tudo começou numa visita de um grupo de caminhada ao Pico da Neblina (AM), e o confronto com a realidade de uma aldeia Yanomami.

Em 2016, a EDS realizou 664 cirurgias, 3.742 atendimentos e 8.508 procedimentos e distribuiu 700 óculos.

Van den Berg participou da 38ª expedição em Iauaretê, povoado de São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade com pouco mais de 43,8 mil habitantes, de acordo com estimativas do IBGE em 2016. A equipe de quatro oftalmologistas realizou 200 cirurgias.

"Embarcamos em um avião Hércules da Força Aérea Brasileira até Manaus, que fica a quase 900 quilômetros de distância de São Gabriel da Cachoeira, lugar conhecido como a ‘Cabeça do Cachorro’, no mapa do Brasil. Ficamos baseados na igreja Dom Bosco, dos padres salesianos, construída em 1930. Permanecemos 10 dias na região, sendo sete dias de trabalho pesado. Acordávamos às 7 da manhã, dormindo às 22 horas, em média", lembra o médico, que enfrentou condições de extremo calor, umidade, insetos e banhos frios.

O londrinense ressalta que as cirurgias de catarata, que nos grandes centros são procedimentos normais, em comunidades indígenas isoladas representam a sobrevivência.

"Encontramos índios com catarata total e a cirurgia devolveu-lhes a condição de poder andar na mata e caçar. É devolver-lhes a reabilitação para a sobrevivência", pontua.

Para acessar tribos como as dessana tukano, tuyuka, hupda, entre outras, os médicos contaram com a ajuda de tradutores e antropólogos.

"Alguns índios falam o nosso idioma, mas muitos somente com a colaboração de intérpretes para nos entendermos. A consulta, nesses casos, é bem difícil. No pós-operatório, apesar de não conseguirmos entender o que dizem, ao voltarem a enxergar, falam em uma linguagem universal de agradecimento e felicidade compreensível por todos", avalia van den Berg.

Para além da medicina, os médicos entram em contato com a realidade de índios, como os hupdas, um povo nômade que, de acordo com os antropólogos, são acostumados a migrar de um lugar para o outro para subsistir. A escassez de recursos, provocada pelo avanço sobre as terras indígenas, está criando gerações de desnutridos.

Van den Berg conta que o impacto é tão grande que, outrora caçadores fortes, os mais novos da etnia já apresentam baixa estatura por causa da desnutrição.

Índios de nações, como dois irmãos adultos, surdos, mudos e cegos, que vivem sozinhos na mata e que contam com expedições, a exemplo da EDS, para receberem atendimentos médicos e odontológicos. São 15 toneladas de equipamentos em cada nova expedição, que partem de Campinas (SP) às mais distantes regiões da Amazônia Legal.

Território onde médicos, como van den Berg, se deparam com situações que revelam o drama da falta de assistência à saúde dessas populações Brasil afora.

Já no aeroporto de São Gabriel da Cachoeira, se preparando para voltar, o londrinense e um pediatra se depararam com uma mãe indígena com um bebê de cerca de trinta dias nos braços.

A criança apresentava uma má formação e precisava de atendimento urgente. Sem poder levar a criança, imediatamente para Campinas, porque não resistiria à viagem, os dois médicos realizaram um procedimento cirúrgico, praticamente sem estrutura, conseguindo salvar o pequeno indiozinho. Uma entre tantas ações da EDS em meio à imensidão da Amazônia.