"Me sentia bem comigo mesmo cada vez que fazia um filme. Mas nunca foi divertido estar entre um projeto e outro". Há uma quantidade de frases e opiniões memoráveis ao longo de pouco mais de duas horas e meia que dura o fascinante documentário "Spielberg" que a rede HBO lançou recentemente. Há muitas declarações ditas pelo próprio realizador, mas esta talvez seja a que melhor explica a viagem empreendida pela documentarista Susan Lazy para resumir a carreira do cineasta, que está há mais de quatro décadas formatando o cinema que todo o planeta consome.
Com total e impressionante acesso não somente a Spielberg, mas a sua família e aos principais nomes de sua equipe de colaboradores, a realizadora trabalha uma hipótese com a qual tenta explicar os temas recorrentes em suas mais de três dezenas de filmes.
O fato de ter vivido uma infância complicada – pai ausente, mudanças constantes e imaturidade da mãe, que levaram a um divórcio traumático – fez com que o jovem realizador se sentisse cômodo atrás de uma câmera e no controle do seu destino e de todos ao seu redor. Assim ele construiu sua carreira como maneira de exorcizar os demônios que o perseguem desde criança. Em algum momento do documentário um crítico se interessa em saber por que o diretor faz sofrer os jovens protagonistas de seus filmes: "Nunca fez terapia?", ele pergunta. O criador de "Tubarão" e "ET" responde sem hesitação: "Não". Mais adiante, ele vai acrescentar: "Os filmes são minha terapia", depois de admitir que muitas vezes seus conflitos familiares se reproduziram palavra por palavra nos roteiros, como mostra uma cena de "Contatos Imediatos de Terceiro Grau". E outra em "E.T". E mais uma em "Agarra-me Se Puderes".

JUDAÍSMO
Além de analisar um por um de seus filmes com uma lupa detalhista sobre sua história pessoal, o documentário – que tem uma estrutura bastante tradicional, seguindo os eventos e filmes de maneira cronológica – é também imperdível porque marca uma reviravolta na vida íntima e criativa do diretor a partir de seu reencontro com o judaísmo. De fato, uma das raras passagens em que Spielberg parece emocionar-se com suas lembranças tem a ver com a religião e os sentimentos contraditórios sobre ela que marcaram sua infância. "Vivíamos no Arizona, em um lugar onde éramos os únicos judeus, e eu me sentia incomodado pelas minhas diferenças com meus amigos e com meu nome judeu quando meu avô gritava alto pelas ruas. Durante anos me distanciei de minhas raízes. Agora, continuo me envergonhando desta negação", explica ele quando o filme começa a repassar as decisões que o levaram a dirigir "A Lista de Schindler".

HISTÓRIAS
São os comentários de seus amigos e colegas da indústria (Scorsese, Geroge Lucas, Coppola, Brian De Palma, J.J. Abrams, Kathleen Kennedy e John Williams) e de seus atores (Harrison Ford, Drew Barrymore, Tom Hanks, Christian Bale, Liam Neeson, Dustin Hoffman e Daniel Day Lewis) que permitem lançar mais luzes sobre o diretor, além de oferecer saborosas histórias acerca de Hollywood. Mas o tesouro mais precioso deste perfil foi a abertura que Spielberg, sem ser um entusiasta de entrevistas autocentradas e nem estar particularmente interessado em revelar muito sobre sua vida, concedeu à diretora.
Enquanto celebra com detalhe e precisão a visão cinematográfica de Spielberg e sua habilidade para entreter o mundo inteiro com seus filmes, o documentário não se detém muito nos poucos tropeços de uma carreira com extenso predomínio de sucessos. Ao falar de seu maior fracasso (crítica e público), a comédia "1941" (exibida em Londrina no Ouro Verde), ele diz que se sentia dono do mundo e capaz de qualquer proeza, depois de "Tubarão" e "Contatos Imediatos". Após este duro golpe, a salvação chegou pelas mãos de George Lucas, que lhe propôs dirigir um filme classe B, aqueles "da infância". Ele diz: "Era Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida", que não se preocupava em ser "Lawrence da Arábia". A propósito desse clássico, Spielberg afirma que foi o farol que, aos 16 anos, despertou suas fantasias como diretor de cinema. E confessa: "Quando assisti o filme, era isso mesmo o que queria fazer da minha vida, mas também achei que não seria possível chegar lá. Mas quando percebi que, muito além de um relato épico, o filme queria era mesmo saber quem sou eu, na verdade decidi que ia fazer cinema. Ou morreria tentando."