No filme, Joaquim (Tiradentes) mantém relações sexuais com uma escrava a quem chama de Preta
No filme, Joaquim (Tiradentes) mantém relações sexuais com uma escrava a quem chama de Preta | Foto: Divulgação


Como o próprio nome indica, o filme de Marcelo Gomes não é sobre Tiradentes, e sim sobre Tiradentes antes de se tornar Tiradentes. É de "Joaquim" que se trata, ou seja, do jovem e ambicioso alferes que trabalha com diligência para alcançar o posto de tenente.

Joaquim é sempre passado para trás na hora da promoção, e ele suspeita que seja por ser um homem pobre. A hipótese de ser brasileiro é secundária para ele.

Estamos no século 18 brasileiro: não seria de esperar outro comportamento. A narrativa da obra diz respeito à transformação de Joaquim. Ao nascimento de sua, digamos, consciência nacional.

O escravismo é um ponto central deste retrato do jovem Joaquim, que, vez por outra, arranca lá alguns dentes. Mais relevante é o fato de manter relações sexuais com uma escrava, a quem chama só de Preta, e em dado momento, sentir-se roubado porque o dono da escrava reclama seus direitos sobre o corpo dela.

Roubado ou enciumado? Tem paixão pela mulher ou o sentimento de inferioridade do pobre (mas escravocrata)?

Outro aspecto relevante no roteiro é a busca da riqueza por Joaquim, capaz de enfrentar um sertão bem agreste em busca de descobrir pedras.

Se o filme parece ter renunciado a explorar as contradições contidas na relação entre o jovem branco e a Preta, a busca de ouro é um momento fraco e explorado em excesso: aqui o longa emperra e pesa, como se Gomes estivesse fascinado pela fantástica paisagem de faroeste (são locações de fato belíssimas).

Nesse ponto, "Joaquim" nem evolui em termos de transformação do caráter de Joaquim, nem de aventura, nem de humor. É como se não soubesse para onde ir.

"Joaquim" tem acertos, e não são poucos, a começar pela direção de atores (Júlio Machado está muito bem como Joaquim, assim como Isabel Zuaá, que faz Zua, a Preta) e pela direção de arte.

Tem problemas igualmente evidentes, como o uso frequente da câmera na mão num terreno excessivamente irregular (por que não trabalhar com um estabilizador como o steadycam?).

No fim, o que se tem é a impressão mista de um filme que ora responde satisfatoriamente aos pesados desafios que se dispôs a enfrentar (a compreensão desse mundo complexo do país no fim do século 18, em que se misturam portugueses e brasileiros, escravos e senhores, ricos e miseráveis, línguas e costumes distintos), ora parece dar relevo a questões que, ao fim, se mostram secundárias.

Digamos que quem quiser perceber as virtudes da obra terá de ficar até a última sequência. Última e magnífica, onde todas as questões propostas pelo filme se mostram de uma vez e por inteiro.

Nos cinemas de Londrina, o filme ainda não está em cartaz.


Outros filmes sobre o personagem
Na crise, Tiradentes surge. O cinema brasileiro parece revisitar o alferes de Vila Rica em momentos de turbulência política. "Joaquim", o mais recente, estreia no rastro das manifestações de junho de 2013 e da deflagração da Lava Jato. Mas a cena não é nova.

A controversa figura histórica foi às telas, por exemplo, nos anos de 1948, 1972 e 1998. Vale lembrar que, em geral, filmes começam a ser produzidos anos antes.

"Adaptações da personagem parecem emergir em momentos de dúvida quanto à representação do projeto nacional, ou mais especificamente do projeto democrático e republicano", diz o conservador-chefe da cinemateca do MAM Rio, Hernani Heffner.

Baseado em processos judiciais da conspiração, "Inconfidência Mineira", de Carmen Santos, estreou em 1948. A produção reconstruiu partes de Vila Rica, hoje Ouro Preto.

Dirigido por uma mulher, fato raro então, o longa começara a ser planejado uma década antes, quando começava o Estado Novo, regime ditatorial de Getúlio Vargas.

Em 1972, um dos momentos mais agudos da ditadura militar, Tiradentes voltaria à cena interpretado por José Wilker em "Os Inconfidentes", de Joaquim Pedro de Andrade. O filme estreou em meio a um quadro de instabilidade, repressão e censura mas também de euforia econômica.

Em 1998, "Tiradentes", de Oswaldo Caldeira, surgiu num país pós-Collor e na Nova República. O papel principal coube a Humberto Martins.

Marcelo Gomes, diretor do recente "Joaquim", afirma que o lançamento do longa coincide com o exato momento em que o país repensa suas bases. "Com uma crise política, vem uma crise existencial: quem somos nós, que país queremos construir, que nação é essa", diz. (Luís Costa
Folhapress)