Fernanda Montenegro: aplaudida em pé pelo público que lotou o teatro
Fernanda Montenegro: aplaudida em pé pelo público que lotou o teatro | Foto: Fotos: Milton Dória



Ave, Fernanda!
Um silêncio significativo tomou conta do Teatro Ouro Verde na segunda-feira (21), segundos antes da entrada em cena de Fernanda Montenegro que trouxe ao FILO uma leitura da vida e obra de Nelson Rodrigues. O público, geralmente ruidoso até mesmo depois do apagar das luzes, colocou-se na condição de receber um grande nome do teatro brasileiro e a atriz entrou no palco conversando com a plateia como se estivesse numa sala de visitas entre amigos. A empatia se instalou imediatamente.
Dali em diante, foi um rio de emoções que atriz e público navegaram juntos, ao som de uma voz potente para alguém de 87 anos que foi aumentando a presença em cena até chegar ao fim do ato com a plateia totalmente concentrada e encantada em todos os momentos.
Fernanda Montenegro fez uma seleção de crônicas de Nelson Rodrigues organizadas por Sônia Rodrigues, filha do dramaturgo, e reunidas no livro "Nelson Por Ele Mesmo". Deste apanhado surge um autor muito mais humanizado: o homem obcecado pelo sexo e a infidelidade, o homem que pôs o dedo nas feridas e preconceitos da classe média, o homem que frequentou bordéis trazendo para sua obra referências das prostitutas num tempo marcado pelo erotismo velado, o homem que conviveu com grandes nomes da cultura brasileira, o homem tido como reacionário que, no entanto, se colocou como alguém que prezava a liberdade a ponto de desferir à esquerda os mesmos golpes que desferia à direita.
Fernanda Montenegro escolheu com precisão os fragmentos da vida de Nelson Rodrigues conseguindo penetrar o coração do homem e o espírito do dramaturgo. Sua leitura é uma trama que costura as duas coisas de modo que o público sai do teatro compreendendo melhor as contradições e vicissitudes de um grande nome da dramaturgia. O teatro nacional sem Nelson Rodrigues seria muito mais pobre, muito mais acanhado sem o ponto fora da curva que ele representou com um olho na sociedade e outro na permanência de sua obra como um retrato do tempo.

Fernanda Montenegro: aplaudida em pé pelo público que lotou o teatro
Fernanda Montenegro: aplaudida em pé pelo público que lotou o teatro



Entre tantas passagens importantes que Fernanda traz à tona com sua escolha precisa de textos encadeados de modo a tecer uma vida e uma obra, um dos momentos mais originais é quando a atriz fala de si mesma e de sua relação com o autor. O público volta à uma redação de jornal no fim dos anos 1950, para "ver" o dramaturgo atender ao telefone e receber os pedidos insistentes da atriz que, naquela época, queria encenar um texto dele com sua companhia porque era necessário fazer teatro brasileiro com texto de um autor brasileiro. Fernanda, segundo ela mesma e segundo Nelson Rodrigues, tanto fez que conseguiu levar ao palco "O Beijo no Asfalto", obra-prima concebida especialmente para atender ao pedido da atriz. Este ponto pode ser compreendido como o encontro de duas potências em 1961, quando a peça foi encenada pela primeira vez. Vê-los novamente juntos agora, neste espetáculo que se concebe a partir de uma "simples leitura", como enfatiza a atriz, é um privilégio que faz o público voltar ao tempo até desembarcar de novo no presente, ao fim da interpretação dos textos que permanecem vivos no veículo fantástico da memória.
A leitura de Fernanda Montenegro é memorialística. Como ela mesma sugere, o público entra numa viagem pontuada por ópera, gênero preferido do dramaturgo enquanto escrevia. Ao penetrar na ópera, penetra-se também no tempo, numa narrativa poderosa que só décadas de palco podem oferecer a uma atriz tão completa em sua obra quanto o próprio Nelson Rodrigues. O resultado é claro: o público sai comovido e agradecido por compartilhar lembranças como uma cena viva, concebida numa sala de visitas onde dois mitos nos contam histórias. Ave, Fernanda!