Belchior em foto do período em que esteve desaparecido no Rio Grande do Sul
Belchior em foto do período em que esteve desaparecido no Rio Grande do Sul | Foto: Reprodução



Quando morreu, em abril 30 de 2017, Belchior era um homem que tinha conseguido algo praticamente impossível para um artista da música popular. O desaparecimento. O anonimato. A solidão. A invisibilidade.
Numa época em que superexposição se tornou um alimento cotidiano, Belchior conseguiu o improvável. Por vontade própria, retirou-se do show business, retirou-se da indústria musical. Retirou-se da sociedade, da família e da propriedade.
Tudo indica que Antonio Carlos Belchior (1946 – 2017) representa um caso único dentro música popular brasileira. Isso fica evidente com a publicação de "Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano", a primeira biografia do cantor e compositor cearense que acaba de ser lançada pela editora Todavia.
De autoria do jornalista Jotabê Medeiros, o livro esclarece dezenas de questões sobre a vida e a obras do compositor. A obra não desenha apenas um mapa da trajetória do compositor, vai além, apresenta um panorama da cultura brasileira a partir da década de 1960.

Jotabê Medeiros, autor de "Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano": primeira biografia sobre o compositor está entre os livros mais vendidos
Jotabê Medeiros, autor de "Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano": primeira biografia sobre o compositor está entre os livros mais vendidos | Foto: Juvenal Pereira/Divulgação



Com o NET Combo você pode receber descontos incríveis ao contratar tudo num mesmo pacote. Acesse e veja as promoções e descontos disponíveis na sua região!

Ex-monge capuchinho na adolescência, ex-estudante de medicina na juventude, Belchior largou tudo para se dedicar à música. Comeu o pão que o diabo amassou no Rio de Janeiro e em São Paulo até Elis Regina gravar, em 1976, duas de suas canções: "Como os Nossos Pais" e "Velha Roupa Colorida".
Em "Apenas um Rapaz Latino-americano", Jotabê Medeiros apresenta as várias facetas de Belchior. Uma das menos conhecidas é a de pintor, atividade em que atuou com afinco sem nenhuma repercussão. Outra foi como produtor musical independente de música experimental.
A obra de Jotabê Medeiros realiza uma bela leitura da vida e obra de Belchior. Sem realizar conclusões rígidas ou abordagens normativas, estimula interpretações e abre caminhos para leituras complementares.

Confira entrevista com o autor do livro que já integra a lista dos mais vendidos.

'Belchior cantou o que quis'

Obra de Belchior, segundo  seu biógrafo, ‘tinha um substrato de educação filosófica, sexual, comportamental e política’
Obra de Belchior, segundo seu biógrafo, ‘tinha um substrato de educação filosófica, sexual, comportamental e política’



Qual você considera a grande contribuição de Belchior à música brasileira?
Creio que ele inventou um lugar especial para si na MPB. Ele cantou o que quis, como quis, fez letras do tamanho que quis, rompeu regras e quebrou dogmas para se colocar entre os grandes. Mas eu o aprecio pela capacidade de contrabando. Ele fez uma obra de cunho eminentemente popular que tinha um substrato de educação filosófica, sexual, comportamental, política. Biscoitos finos para as massas. Fez isso com grande presença de espírito e genuíno amor dionisíaco pelo povo, pelos prazeres cotidianos. Como compositor e intérprete de música popular, eu o coloco tranquilamente entre nossos maiores, ao lado de Chico, Caetano, Gil, Itamar Assunção, Melodia e outros.

Em "Apenas um Rapaz Latino-americano" você aponta para a importância da literatura na obra de Belchior. Pode-se afirmar que, na obra de Belchior, as letras das canções são mais determinantes do que as composições?
Ele mesmo, falando disso ao Professor Pasquale, disse que dava tanta importância para o suporte quanto para o conteúdo. Acredito que é um dado subestimado, o veículo das canções, mas ele tinha grande capacidade de passear por gêneros – fez baião, rock, folk, reggae, cantigas gregorianas, baladas quase bregas, gospel, valsas. Como Roberto Carlos, ele moldava a métrica das canções à sua necessidade poética. O jeito como ele canta ‘mi-se-ri-cor-di-osi-ssi-ma-men-te’ na canção "Cemitério", do disco "Mote & Glosa" de 1974, é invenção pura na música brasileira.

No livro você apresenta vários paralelos entre Belchior e Bob Dylan. O que os dois possuem em comum?
Os dois são propensos à ruptura. As canções deles pareciam que nunca eram repetidas, sempre as cantavam de um jeito diferente. Faziam letras épicas, em boa parte de suas carreiras, e ambos analisam a essência da identidade de suas nações. Sumiram por um tempo do olho público, Belchior também foi um convertido religioso, assim como Dylan. Há muitos pontos de contato.

Belchior em foto da Primeira Comunhão
Belchior em foto da Primeira Comunhão | Foto: Fotos: Reprodução



O assunto que mais gera curiosidade na trajetória de Belchior diz respeito ao seu desaparecimento após 2007. Em alguns momentos esse desaparecimento parece uma postura crítica, em outros momentos parece algo burlesco. Qual a sua leitura desse desaparecimento?
Andei lendo sobre os sumidos das artes. Alguns somem por blecautes mentais, como Syd Barrett. Outros, por perseguição social, como Jim Morrison. Há os que morrem por causa de uma inadequação às regras do show business, como Jimi Hendrix ou Amy Winehouse. Belchior não parece com nenhum outro que eu tenha lido a respeito. Me parece um caso único. Manteve durante todo o tempo grande lucidez, como narram seus derradeiros interlocutores. Mas é claro que fugir da vida social nessa era de superexposição tem um custo, que não sei dimensionar. Pareceu ridículo, em alguns momentos. Ele não soube rebater o cerco, em outros. Não quis deixar um manifesto de sua ruptura, o que dificulta um pouco a análise.

Mas você enxerga a razão para Belchior ter se tornado um misantropo exemplar?
Uma sociedade doente cria isolamentos exemplares. Acredito que ele, em face de uma dolorosa percepção da vida cotidiana, preferiu um caminho sem volta em direção a um lugar que não tinha como precisar aonde dava.


Muitos fãs acreditam que a última mulher de Belchior deu origem à "Síndrome Yoko Ono" que culminou em seu desaparecimento. Você acredita nessa teoria?
Ouvi mais de uma dezena de pessoas sobre Edna Assunção de Araújo, ou Edna Prometheu, a viúva. É quase unânime que ela aprofundou o isolamento dele. Que tinha um comportamento difícil, imã de conflitos. Como sobrevivente, ela está carregando esse estigma. Mas é também a mulher que o acompanhou durante uma década, que compartilhou suas derradeiras criações, que acalentou seus últimos sonhos. Não tenho elementos para responsabilizar ninguém por nada.

Quando Belchior morreu você estava próximo de localizá-lo. Qual foi a sensação?
Eu sonhei algumas vezes que o encontrava e que ele ralhava comigo por ter esquecido de mencionar uma ou outra passagem de sua vida. Eu confesso que sonhava vê-lo no palco, cantando, com uma voz amadurecida, com a poesia sedimentada, de uma doce ferocidade, como um Leonard Cohen do agreste.

Vamos supor que você tivesse localizado Belchior com a oportunidade de uma boa conversa. Como biógrafo, quais perguntas faria?
Se eu o encontrasse, teria várias perguntas. Onde estão os desenhos que você fez para a Divina Comédia, de Dante? Se você amava tanto a língua italiana, por que nunca compôs em italiano? Por que gostava mais de Crateús do que de Sobral? Você sentiu que houve, em algum momento de sua vida, um bloqueio deliberado em torno do seu nome na MPB, como um expurgo?

Imagem ilustrativa da imagem O homem que buscava a invisibilidade



Serviço:
"Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano"
Autor – Jotabê Medeiros
Editora – Todavia
Páginas – 238
Quanto – R$ 49,90

Jardineiras jeans, camisetas baby look, calças de pregas como suspensórios, chapéu de fazendeiro australiano. Bistrôs franceses, amigos ingleses. Em 1978, Belchior tinha chegado à ‘mondanité’ e seu bigodão à la Rivelino o tornara um espécie de dândi, um ícone fashion. Sua condição de ídolo estava sedimentada, ele frequentava todos os espectros sociais, e dizia que sua meta era chegar à maior variedade de gente possível. A gravadora via, naquele trânsito franco de que ele desfrutava entre polos distintos da MPB e do público, uma abertura para situar um novo fenômeno popular. Começaram os esforços para sensualizar Belchior, esforços que culminariam no álbum "Todos os Sentidos". Versos como ‘vou brincar a noite inteira de amor’ não pareciam dignos da ourivesaria do cearense e de tudo que ele fizera anteriormente na década, mas agora estava ali, à frente de um disco em que ele olha com os olhos de raio X para o ouvinte da foto da capa, aos 31 anos, mão lânguida no cabelo, foto em preto e branco, camisa aberta no peito. (Fragmento de "Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano, de Jotabê Medeiros)