Os caminhões de mudança levam histórias pelo caminho. Entram nas cidades com pedaços de sonhos, esperanças, frustrações, lembranças. Tem a cadeira do filho quando era bebê, o guarda-roupa com cabides vazios, a mesa onde o avô jogava baralho, o fogão que guarda segredos de cozinha.
Se abríssemos as portas do caminhão de mudança, talvez saltassem dele memórias que ficaram na capital, conversas que se espalharam pelo interior quando a moça voltou da lua de mel decepcionada com o casamento.
Os caminhões de mudança misturam histórias: tem a de Paulo numa metade, na outra a de Ana porque os dois se mudaram para a mesma cidade e o que sobrou de espaço entre as mobílias foi preenchido por um acordo que acabou em amizade e cada um pagou a sua parte.
O caminhão de mudança tem um sorriso na carroceria, mas muita gente chorou quando fez a mala e se despediu da cidade onde nasceu ou embalou os poucos móveis que o filho levou para outra cidade, onde montou a república.
No caminhão de mudança juntam-se cadeiras, espelhos quebrados, armários com cheiro de pinho, caixas com lustra-móveis, panelas, raladores de queijo, casacos de frio, a manta que passou de mãe para filho. Os ventiladores giram a cada curva ainda que ninguém esteja perto para aproveitar o vento. Os retratos dialogam, os quadros sentem saudade das paisagens livres e encolhem-se em cores aprisionadas nas caixas.
Tem também os objetos que aproveitam aquela estranha liberdade, brinquedos que esqueceram ligados, vídeos que ninguém mais assiste e ainda assim são conservados como fios de memória ou antenas de captar visões perdidas.
Os caminhões de mudança cruzam o país de norte a sul, identificam montanhas, conhecem as praias, ficam ofegantes nos grandes centros urbanos, atrapalham o trânsito ao meio-dia, estacionam no lugar errado.
Quando abrem as portas a família inteira os rodeia, querendo saber se vieram a TV, os lençóis, as garrafas de vinho, os roupões de banho, a poltrona azul, o abajur sem a cúpula, a almofada indiana, o relógio de corda, todos devidamente embalados para aguentarem os 500 quilômetros entre São Paulo e Londrina, os mais de 5 mil quilômetros entre o Oiapoque e o Chuí que consomem sete dias e quatro horas inteiras de viagem.
Entre a nova e a velha casa, os motoristas dormem mal mas seguem mesmo cansados, almoçam nos restaurantes dos postos de combustível, saindo sem camisa como heróis da BR 2, aquela que alguém inaugurou em 1951 e onde até hoje faltam serviços de terraplenagem entre trevos, viadutos, pontes e túneis.
Até por isso, as estradas confabulam com as mobílias, pedem que aguentem o tranco, que segurem-se nas curvas, que não pulem fora em caso de acidente, que não se separem como os casais por excesso ou falta de velocidade. Os caminhões fazem um zigue-zague de rotas e vidas que vão de norte a sul, de leste a oeste, num mapa de histórias individuais rodando pelo Brasil.
Quando os móveis chegam, as casas os consomem com a avidez dos espaços vazios, transformando-se enfim numa verdadeira habitação. Porque só os móveis têm a cara do dono, seu cheiro guardado na cabeceira da cama, um atestado de identidade que se inscreve no encosto torto da poltrona, carregada de cidade em cidade como um emblema aventureiro da mudança ou prenúncio da transformação.

Imagem ilustrativa da imagem O caminhão de mudança
| Foto: Marco Jacobsen
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