Stephen King: "O desafio, para mim, é lembrar sempre que cada personagem faz aquilo que acha certo, mesmo que para algumas pessoas ele esteja terrivelmente errado"
Stephen King: "O desafio, para mim, é lembrar sempre que cada personagem faz aquilo que acha certo, mesmo que para algumas pessoas ele esteja terrivelmente errado" | Foto: Reprodução



Nova York - "Minha mulher achou o manuscrito na lata de lixo. Leu e entregou de volta para mim. Pediu que eu não desistisse daquela história, porque era muito boa." O manuscrito era um esboço de "Carrie, a Estranha", e quem conta o episódio é o escritor americano Stephen King, 70 anos, que já vendeu mais de 400 milhões de livros no mundo. "Carrie" foi o primeiro que lançou, em 1974.
A importância de Tabitha Spruce na vida de King, com quem está casada há 46 anos, surgiu como assunto na conversa do escritor numa manhã nova-iorquina dedicada a encontrar jornalistas estrangeiros na sede da editora Simon & Schuster.
Mulheres foram assunto durante grande parte das respostas de King. Ele escreveu, com o filho caçula, Owen, 40, o livro "Belas Adormecidas", que será lançado no Brasil no próximo dia 16. "Um dia perguntei ao meu pai o que achava da ideia de um livro em que, num dia qualquer, todas as mulheres do mundo não acordassem. Eu queria que ele escrevesse, ele se recusou. Ficamos com a ideia nos rondando por um tempo e então veio a ideia de escrevermos juntos. Mas não tínhamos ainda personagens, era só uma ideia engraçada."
Owen é interrompido por King, que fala, em tom brincalhão, que o filho está falando bobagens ("bullshit" é a palavra utilizada). Diz então que não é bem assim. "Owen já tinha uma coisa bem mais formatada, que é a combinação da ideia das mulheres que não acordam com o cenário de uma prisão feminina", explica o autor. De bom humor e ar jovial, King morde um palito de dente, algo que continuou fazendo durante a entrevista inteira - ele tinha alguns palitos no bolso de sua camisa.

MICROCOSMO
Como em praticamente todos os seus 56 romances e mais de 200 contos, a ação se passa numa cidadezinha. Esta se chama Dooling. "Pensamos também em colocar a prisão numa cidade pequena, porque o que aprendi na escola, nas aulas de literatura, é que um microcosmo reflete o macrocosmo. Você pode usar um lugar pequeno para falar de tudo", justifica King.
Com a carreira bem-sucedida, agora marcada entre sua estreia com "Carrie", livro sobre uma garota paranormal que sofre bullying, e as mulheres em apuros de "Belas Adormecidas", King fala muito sobre a presença feminina em sua vida.
Ele foi criado pela mãe. Quando tinha dois anos, seu pai saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. King insiste que foi exatamente assim, sem inventar a situação que lembra piada recorrente.
Ela não queria que o menino ficasse estigmatizado como filho de mãe solteira. Então mandou que ele respondesse a quem perguntasse que o pai estava na Marinha.
"Minha mãe tinha cinco irmãs e todas estavam por perto o tempo todo. Quando comecei a publicar livros, vi que as mulheres eram aquelas que faziam as coisas acontecerem nas editoras. Encontrei grandes profissionais. Então sempre convivi bem com mulheres, me sinto confortável trabalhando com mulheres e escrevendo sobre elas."
"Belas Adormecidas" mostra as mulheres pegando no sono e não despertando mais. Fios crescem rapidamente de seus cabelos e formam casulos em torno de suas cabeças. Os homens se revoltam com a situação, em desdobramentos violentos e desesperados.
A dupla de autores ri diante da pergunta: seria possível escrever um livro em que os homens caíssem no sono eterno e deixassem as mulheres sozinhas na Terra?
"Acho improvável", responde Owen. King pega mais pesado: "Impossível. Vejo os homens agressivos, confrontadores. Veja Donald Trump e o ditador da Coreia do Norte. Uma briga louca de machos alfa. Se todos os homens dormissem, acho que as mulheres trabalhariam muito bem juntas. Não haveria confronto, não haveria história".

PRESÍDIOS
Owen visitou penitenciárias femininas. Segundo o pai, trouxe tristeza para a narrativa. "Ele esteve na prisão de New Hampshire. A biblioteca tinha todos os meus livros! Pobres mulheres!", brinca.
A dupla pensou meses sobre as consequências que essa situação poderia render no enredo. No fim, eles optaram por contar apenas os primeiros dias após o surgimento da estranha condição das mulheres, sem ampliar a ação para fora de Dooling. "E, como todas acabariam dormindo, pensamos no personagem masculino para amarrar a história, que é o psiquiatra da prisão, Clint", conta Owen. "Mas ele não é um herói, um personagem que salva outros em várias situações durante a trama."
King diz estar muito satisfeito com os personagens que inventaram. "Ele têm imperfeições, são realistas, ninguém é só bonzinho ou totalmente maldoso. O desafio, para mim, é lembrar sempre que cada personagem faz aquilo que acha certo, mesmo que para algumas pessoas ele esteja terrivelmente errado. Você precisa ficar ao lado de cada um deles."
Com tantos personagens - o livro tem no começo uma lista de todos, para facilitar a leitura -, "Belas Adormecidas" poderia funcionar como uma série de TV. Owen revela que a ideia inicial chegou a ser um roteiro para uma, mas, quando os dois se uniram para o trabalho, a opção pelo livro foi mais sedutora.
Segundo os dois, o processo foi "pacífico" - palavra usada por Owen. Não houve brigas. "Foi como jogar tênis. Um passando a bola para o outro", conta o pai.
Owen às vezes escrevia cerca de 30 páginas e perguntava ao pai para onde ele iria a partir daquele ponto.
"Já escrevi em parceria antes, até com meu filho mais velho, Joe Hill, mas isso foi totalmente diferente", opina King. "Houve uma mistura..."
Owen interrompe o pai. "Sei que as pessoas podem ficar tentadas a ler o livro procurando saber quem escreveu cada parte, mas nem nós temos condições de dizer."
King dá sua versão: "Eu penso que o livro foi escrito por uma terceira pessoa, que é a combinação de nós dois. O resultado é totalmente diferente do que cada um escreveria sozinho.