Entre as décadas de 1960 e 1970, escritores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes ficaram conhecidos mundo afora impulsionados pelo chamado "boom latino-americano". A literatura da América Latina, até então restrita aos países de língua espanhola, da noite para o dia conquistou leitores nos quatro cantos do mundo.
Entre os escritores que integraram o "boom", mas não se tornaram celebridades, estava o chileno José Donoso (1924 – 1996). Embora fizesse uso de elementos do "realismo fantástico", sua literatura foi construída a partir de uma radicalidade maior. Nas palavras de Roberto Bolaño, a herança de Donoso "é um quarto escuro, e no interior desse quarto lutam as feras".
Além de escuridão e feras, há também uma coleção astronômica de pesadelos selvagens, delírios caudalosos e bizarrices multifacetárias. Uma prova dessa batalha de garras nas trevas está em "O Obsceno Pássaro da Noite", romance lançado pela editora Benvirá e considerado a obra-prima de José Donoso.
Publicado originalmente em 1970, a obra é um labirinto narrativo com várias vozes e múltiplos pontos de vista de um mesmo fato. A primeira e a segunda pessoa se alternam livremente até mesmo dentro de um mesmo parágrafo. Aos olhos do leitor, o possível fio de condução no labirinto assume a forma de uma ambiguidade constante e infindável.
O cenário de "O Obsceno Pássaro da Noite" é um antigo convento abandonado habitado por freiras decrépitas, idosas esclerosadas abandonadas, bruxas ressentidas e crianças órfãs miseráveis. Um universo feminino onde não existe a figura do adulto, apenas a da velhice e da infância. Os dois pólos onde o delírio encontra terras férteis para a criação de uma realidade paralela.
A única figura masculina presente nesse harém grotesco é Mudinho, um homem que reside e trabalha no local como operário de qualquer tipo de serviço. Entre as atividades, vedar portas e janelas para que o mundo externo não saiba da existência da vida interna do lugar. Considerado surdo-mudo, é o principal narrador do romance. De seu ponto de vista, já foi outro homem, o braço direito de um rico político pertencente a uma oligarquia secular, o Dom Jerónimo.
Em "O Obsceno Pássaro da Noite", nada é aquilo que parecer ser. Há o fato real e o mesmo fato alterado pelo delírio mental de quem o narra. Há o sentido concreto e o mesmo sentido deformado pela consciência de quem o revela. A fantasia de cada personagem funciona como uma resposta frente a uma enorme lista de traumas que envolvem pobreza material e afetiva, abandono, doença, velhice, loucura, morte, crueldade, solidão, deformidade, etc. Trevas e mais trevas contaminadas por alguns minúsculos fiapos de luz que apontam a salvação através da imaginação.
O episódio mais polêmico de "O Obsceno Pássaro da Noite" reside na ideia do Rinconada, um paraíso artificial criado para abrigar portadores de deformidades físicas, aberrações da natureza e outras inomináveis monstruosidades. Ao ver o filho único nascer com sérias deformidades, dom Jerónimo concebe um lugar onde todos os habitantes sejam apenas anomalias, portanto, normais entre si.
Numa fazenda, constrói uma cidade chamada Rinconada para abrigar apenas aberrações. Uma verdadeira nação onde a normalidade é exatamente a anormalidade. Protegido nesse paraíso, o filho não enfrentaria nenhum preconceito ou exclusão que poderia experimentar no mundo usual. A ideia do escritor é um exercício de inversão de lógica: em lugar de segregar a "anormalidade", segregar a "normalidade". O resultado final desse típico "freak show", claro, não tem como funcionar como nunca chegou a funcionar sua versão contrária.
Tudo o que acontece em "O Obsceno Pássaro da Noite" é de difícil descrição. Toda forma se deforma. Não há chão para colocar os pés, não há nada para as mãos agarrarem. O universo literário criado por José Donoso desconcerta a própria irrealidade, cobre de males corpos e almas em nome da missão de caducar o mundo e suas máscaras. Uma poética de pedras ásperas e pontiagudas.
José Donoso nasceu em Santiago do Chile, em 1924, numa família de antigos pescadores. Deixou o país na década de 60 para residir na Espanha, onde permaneceu até o final da década de 80. De volta à sua cidade natal, criou uma série e oficinas literárias que formou uma nova geração de escritores chilenos. Faleceu em 1996 com 22 livros publicados. Poucos deles foram publicados no Brasil, apenas "O Misterioso Desaparecimento de Marquesinha de Loria" (Difel, 1984) e "Casa de Campo" (Difel, 1985) encontrados apenas em sebos. Em janeiro de 2013 a editora Cosac Naify publicou "O Lugar Sem Limites", breve romance que traz a história de Manuela, um travesti sexagenário que vive num prostíbulo do fim do mundo remoendo as glórias do passado reinventado.

Serviço:
"O Obsceno Pássaro da Noite"
Autor – José Donoso
Editora – Benvirá
Tradução – Heloisa Jahn
Páginas – 488
Quanto – R$ 49,90

Diante dessa elite de monstros de primeira classe que cuidaria de Boy e o educaria, Jerónimo teve que desenvolver o fino trabalho de convencer todos eles de que o ser anômalo, o fenômeno, não é um estágio inferior do gênero humano diante do qual os homens têm direito ao desprezo e à compaixão: essas são reações primárias que ocultam a ambiguidade de sentimentos inéditos muito semelhantes à inveja, ou ao erotismo inconfessável produzido por seres tão extraordinários quanto eles, os monstros. Porque a humanidade normal só se atreve reagir diante das gradações habituais que vão do belo ao feio, que em última estância não passam de matizes da mesma coisa. O monstro, em compensação, pertence a uma espécie diferente, privilegiada, com direitos próprios e cânones particulares que excluem os conceitos de beleza e feiúra como categorias insuficientes, já que, na essência, a monstruosidade é a culminação das duas qualidades sintetizadas e exacerbadas até o sublime. Os seres normais, aterrorizados pelo excepcional, trancafiavam-nos em instituições ou em gaiolas de circo, acossando-os com o desprezo para despojá-los do seu poder. (Fragmento de "O Obsceno Pássaro da Noite" de José Donoso)