João Anzanello Carrascoza: em seu livro "Aos 7 e Aos 40", autor diz aquilo que não está explícito na narrativa
João Anzanello Carrascoza: em seu livro "Aos 7 e Aos 40", autor diz aquilo que não está explícito na narrativa | Foto: Adriana Vichi/Divulgação



Esqueça aquele clichê de que o passado deve ficar no passado. Também esqueça aquele outro clichê de que o presente se faz no presente. Nas emoções humanas parece não existir essa distinção entre algo que já foi e algo que é. As duas coisas se misturam a tal ponto que não podem ser magicamente separadas. E o resultado pode ser uma reveladora compreensão da vida.
Essa sensação de que tudo se mistura, passado e presente, num movimento infinito na cabeça do ser humano está latente em "Aos 7 e Aos 40", romance do escritor paulista João Anzanello Carrascoza que acaba de ser reeditado pela editora Alfaguara.
A obra apresenta duas narrativas paralelas. Na verdade trata-se de um único personagem em dois tempos diferentes, passado e presente. A mesma voz em duas etapas distintas da existência. Uma das narrativas traz a voz de um garoto e suas primeiras experiências de vida. A outra traz a voz de um sujeito de meia idade experimentando a sensação de paternidade com um filho pequeno.
Como as duas vozes pertencem a um único personagem, distanciados apenas pelo tempo, a memória surge como ponto de ligação entre elas. A obra é formada por pequenos capítulos onde, através dos acontecimentos do cotidiano, surgem pequenas revelações. Apesar de pequenas e discretas, essas revelações são capazes de deixar marcas profundas na memória. E um belo dia elas acabam explodindo no território das lembranças para recriar um novo lugar no mundo.
Em "Aos 7 e Aos 40", a percepção adulta e a percepção infantil caminham lado a lado. Cada uma sorvendo elementos da outra. A infantil vislumbrando o universo adulto e a adulta se alimentando das referências infantis. Duas percepções caminhando paralelamente até se encontrarem no ponto onde a vida deve ser recoberta de sentidos.
Em seu relato, o personagem narrador cria uma via de mão dupla entre passado e presente. Numa das vias, na idade infantil, ele é aquilo que será. Em outra via, na idade adulta, ele é aquilo que foi. Anzanello Carrascoza une essas duas vias através de silêncios, através de pontos distantes que devem ser reconectados.
Nascido em 1962 na cidade de Cravinhos, interior de São Paulo, João Anzanello Carrascoza é autor de mais de vinte livros. Um dos grandes contistas da literatura brasileira contemporânea, possui um jeito particular de apresentar sutilezas. Isso fica evidente em "Aos 7 e Aos 40", onde a completude perdida da infância pelo adulto reaparece quando esse mesmo adulto tem um filho e é impulsionado a redimensionar a própria infância. Algo como o filho que existe dentro do pai e o pai que existe dentro do filho.
O desenho é simples e emocionante. De um lado um garoto jogando bola, indo para a escola, assistindo desenho animado, vendo a mãe fazendo almoço, o pai saindo para trabalhar, descobrindo a amizade, a sensação de amor, a percepção da frustração, etc. De outro lado um homem reproduzindo isso na idade adulta: trabalho, amor, casamento, paternidade, família, cotidiano, dificuldades, obrigações, dores, desilusões, etc. Tudo isso se juntando, cada elemento em seu tempo, numa mesma pessoa para criar um homem até então pautado pela fragmentação.
"Aos 7 e Aos 40" diz aquilo que não está escrito, aquilo que não está explícito na narrativa. Tudo com uma simplicidade memorável. Como se toda percepção humana fosse formada por três ou mais camadas. A primeira camada seria a imediata, colada ao real e ao cotidiano. A segunda seria mais sutil, o sentido que a primeira camada não é capaz de dizer, mas aponta através das emoções. A terceira camada seria mais sutil ainda, estaria na rede de associações entra as duas camadas iniciais para criar uma compreensão da vida carregada de sentidos.

Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - Saudade do futuro
| Foto: Reprodução



Serviço:
"Aos 7 e Aos 40"
Autor – João Anzanello Carrascoza
Editora – Alfaguara
Páginas – 120
Quanto – R$ 34,90

Mas, como era verão, a chuva logo se encolheu, fechando-se igual um zíper e se guardou no céu, pra mais tarde sair outra vez. Eu continuava no meu canto, vendo "A Pantera Cor de Rosa", sem o que fazer com o meu mínimo saber das coisas. Logo o tio Zezo reapareceu, seguido pelo pai e pela tia. Sentou-se em sua cadeira, parecia bem disposto, como se o sono tivesse injetado nele vitalidade, trazendo pra mim aquele tio que eu conhecia e amava. E quando parecia que tudo era o que sempre fora, o pai e o tio conversavam distraidamente sobre as coisas da vida, sem nenhuma urgência, e a tia andava de lá pra cá, trazendo algo pra que bebessem, quando eu já nem lembrava mais porque tínhamos viajado até ali, nesse instante, de repente – como se esbarrasse no interruptor da realidade e a ligasse –, o tio me olhou, e eu vi tudo aquilo em seu olhar. Então, disfarcei e saí pra varanda. De lá, pude perceber as sombras da noite a cobrir a cidade, e senti subindo, devagar, do fundo de mim, o maior entendimento. (Fragmento de "Aos 7 e Aos 40", de João Anzanello Carrascoza)