Sam Shepard: obra pode ser considerada o último testemunho literário do autor pautado por elementos autobiográficos
Sam Shepard: obra pode ser considerada o último testemunho literário do autor pautado por elementos autobiográficos



Aos 73 anos de idade, o ator e escritor norte-americano Sam Shepard havia escrito apenas contos, peças teatrais e roteiros de cinema. Alguns meses antes de morrer, em julho de 2017, publicou seu primeiro romance, "The One Inside".
Considerado o testemunho final de Sam Shepard, o livro acaba de ganhar sua edição brasileira pelas mãos da editora Estação Liberdade com o título "Aqui de Dentro". Trata-se do relato de um homem percorrendo os labirintos da memória procurando acertar as contas com o passado.
Num primeiro momento o leitor pode duvidar tratar-se de um romance devido à estrutura fragmentária, não cronológica e inundado de vazios e lacunas. Tudo embaralhado como uma sucessão de narrativas curtas, desconexas e independentes. Mas, com o decorrer das páginas, pontes surgem sobre os vazios para dar origem a uma história unificada e mais abrangente.
O narrador é um ator que, na velhice, resolve olhar para dentro de si mesmo e acertar as contas com dois elementos básicos do passado: as mulheres que passaram por sua vida e o falecido pai.
Mas as coisas não são tão simples assim. Sam Shepard utiliza a figura do pai e das mulheres para reconstruir, de maneira completamente contemporânea, a jornada de Édipo, personagem da tragédia grega de Sófocles (496 – 405 a.C.).
As reminiscências do narrador remetem à época em que tinha 13 anos e morava com o pai. A mãe havia desaparecido da vida da família tempos atrás. O pai vive um caso amoroso com uma moça um pouco mais velha que o garoto. E o garoto se tortura ao ouvir o som de sexo proveniente do quarto do pai. Com o tempo, o garoto começa a ter uma relação amorosa com a amante do pai, em total segredo e temperada pelo medo.
Seguindo a clássica tragédia de Édipo, o narrador necessita do assassinato da figura do pai. Não literalmente, mas através de sonhos, já na velhice, quando decide navegar dentro de si mesmo para acertar as contas com o passado. E faz isso de uma maneira simbólica próxima do fantástico que encobre uma conclusão mais contemporânea, e talvez cruel, para as reverberações da tragédia edipiana.
No prefácio do livro, a poeta e cantora Patti Smith reflete sobre os elementos simbólicos da seguinte forma: "A realidade é superestimada. O que sobra são as palavras rabiscadas num panorama que se desdobra, vestígios de imagens poeirentas arrancadas à memória, um canto fúnebre de vozes desaparecidas vagueando pela planície americana. ‘Aqui de Dentro’ é um atlas se amalgamando, marcado pelos saltos das botas de um andarilho que trilha instintivamente, de olhos abertos, as distâncias de suas estradas misteriosas."
"Aqui de Dentro" foi escrito quando Sam Shepard já sofria as consequências da esclerose lateral amiotrófica. Com dificuldade de movimentos, escreveu partes do livro à mão e outra parte registrou oralmente com o auxílio de um gravador. Por esse contexto, muita gente passou a enxergar a obra como último testemunho literário do autor pautado por elementos autobiográficos.
Sam Shepard escreveu mais de 50 peças teatrais. Com a dramaturgia de "Criança Enterrada" ganhou o prêmio Pulitzer de 1979. O detalhe é que nunca subiu no palco para encenar nenhum de seus textos. Mas no cinema atuou em mais de 60 filmes e séries. Sua grande escolha foi atuar em papéis secundários. Foi indicado ao Oscar, em 1984, como melhor ator coadjuvante pelo filme "Os Eleitos", dirigido por Philip Kaufman e baseado no livro homônimo de Tom Wolfe. Sua última atuação foi na série "Bloodline", da Netflix, como o patriarca da família Rayburn.

Serviço:
"Aqui de Dentro"
Autor – Sam Shepard
Editora – Estação Liberdade
Prefácio – Patti Smith
Tradução – Denise Bottmann
Páginas – 208
Quanto – R$ 39

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Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - Reminiscências de uma tragédia anunciada

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[left]Fragmento:

De manhã cedo: entregam o corpo de meu pai no porta-malas de um Mercury cupê 79, orvalho ainda denso nas luzes laterais. O corpo está firmemente enrolado em plástico transparente, da cabeça aos pés. Amarrado com tiras de borracha cor de pele no pescoço, na cintura e nos tornozelos – estilo múmia. Ele ficou bem pequeno com o andar das coisas – talvez vinte centímetros de altura. Agora estou com ele na palma da mão. Peço licença a eles para desembrulhar a cabecinha, só para conferir se ele está morto mesmo. Autorizam. Todos estão de lado, mãos nas costas, cabeça baixa numa espécie de luto envergonhado, mas nada que se vá questionar. É bom manter esse lado afável. Além disso, agora parecem muito educados e pacientes.

(Fragmento de "Aqui de Dentro", de Sam Shepard)[/left]