Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - O sorriso do absurdo contra a tristeza inevitável
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Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - O sorriso do absurdo contra a tristeza inevitável



Existe aquele tipo de receita culinária que pode ser feita por qualquer um. Basta alimentar um leitão com sorvete durante três dias. Na sequência, picar um cacho de banana verde em 798 pedaços iguais. Numa tigela misturar dois metros de farinha de milho, meio quilo de leite de cobra, cinco copos de ovos e uma pitada mar. Depois basta pisar sobre a massa, acrescentando a banana picada, até atingir a consistência de uma genuína sola de sapato. E colocar no forno por 12 horas. No final, só tirar do forno com cuidado e jogar tudo pela janela o mais rápido possível. Depois basta soltar o leitão e tomar o restante do sorvete.
Esse tipo de receita se encaixa perfeitamente dentro da chamada culinária nonsense criada pelo escritor inglês Edward Lear (1812 – 1888). Basta misturar coisas improváveis sem nenhum objetivo, colocar uma dose de absurdo, algumas pitadas de humor e uma montanha de disparates.
Edward Lear foi o responsável pela inserção do nonsense na literatura, responsável pelo começo da estruturação do gênero. Seu primeiro livro de poemas, "Livro de Nonsense" ("Book of Nonsense"), publicado em 1846, serviu de referência para o própria utilização do conceito de nonsense na literatura. Mas foi seu conterrâneo Lewis Carroll (1832 – 1898) que ficou com a fama de grande criador do nonsense com o clássico "Alice No País das Maravilhas", publicado originalmente em 1865.
A editora Iluminuras acaba de lançar "Conversando Com Varejeiras Azuis", uma oportunidade para os leitores conhecerem a literatura de Edward Lear. Organizado pela professora Dirce Waltrick do Amarante, a coletânea traz a diversidade da produção do poeta compreendendo histórias, poemas, desenhos e limeriques.
Os limeriques (limerick em inglês) estão entre os versos mais conhecidos de Edward Lear. São poemas de quatro versos com rimas no primeiro, segundo e quarto verso. Exemplo: "Havia uma moça cujo nariz comprido / Chegava-lhe até o umbigo; / Contratou então uma criada, senhora bem-comportada, / Para levar seu formidável nariz comprido." Como viveu na época do apogeu do Império Britânico, parte do conteúdo de seus limeriques possuem uma visão do estrangeiro como elemento de estranhamento.
"Conversando Com Varejeiras Azuis" também traz, além da culinária nonsense, a botânica nonsense. São desenhos de plantas imaginárias, híbridas, que retratam o cruzamento de vegetais com animais ou objeto inanimados. É possível encontrar, por exemplo, a Latia Uivaltia (uma planta cujo frutos são cabeças de cachorros), o Tickitackia Horologica (arbusto em que cresce relógios), a Porquiaoinquia Pyramadalis (árvore que dá porcos) e a Varejeiraazulia Zumlenciosis (planta onde germinam moscas varejeiras).
Edward Lear nasceu em 1812, caçula de uma família de 21 filhos. Sua especialidade foi o desenho naturalista, passou a vida retratando pássaros, plantas, animais e paisagens. Foi funcionário do Museu Britânico e chegou a dar aulas de desenho à Rainha Vitória. Realizou inúmeras viagens pela Europa e colônias britânicas retratando paisagens de campos e cidades.
Sua obra literária sofreu sob o peso do mesmo e velho dilema presenciado pela obra de Lewis Carrol. A discussão se resume em saber se sua arte é literatura infantil que os adultos adoram ou é literatura adulta que as crianças adoram.
Esse dilema secular pode ser explicado pelo fato do nonsense estar equivocadamente vinculado apenas a elementos da imaginação do universo infantil. Ele é algo muito maior. Algo capaz de deixar o leitor suspenso entre a perplexidade e o riso, entre a identificação e o estranhamento. Algo capaz de criar um jogo entre as forças da ordem e da desordem onde a brincadeira do humor torna-se uma saída sentido contra as regras sociais opressoras.
Quando Edward Lear começou a criar seus poemas e limeriques cômicos, o nonsense não era um gênero estabelecido dentro da literatura. Seu interesse estava em escrever versos alegres e completamente inconsequentes. Em suas palavras, o nonsense era simplesmente o "ar de suas narinas". Uma maneira de "libertar o espírito da opressão das regras impostas pela sociedade". E também uma maneira de fugir da "tristeza inevitável".

Serviço:
"Conversando Com Varejeiras Azuis"
Autor – Edward Lear
Editora – Iluminuras
Organização e Tradução – Dirce Waltrick do Arantes
Páginas – 128
Quanto – R$ 45

Os quatro viajantes foram obrigados a tomar a decisão de seguir seu passeio por terra: mas, por sorte, aconteceu de passar por ali, naquele momento, um velho Rinoceronte, no qual eles subiram; e todos os quatro ficaram em suas costas – o Manha-Artimanha sentado em seu chifre, e a Gatinha se balançando na ponta de seu rabo –, e assim, partiram, levando apenas quatro feijõezinhos e um quilo e trezentos e sessenta gramas de purê de batata, para durar toda a viagem. Contudo, eles conseguiram várias galinhas e perus e outros pássaros que pousavam incessantemente na cabeça do Rinoceronte, com o propósito de catar sementes de rododentros que cresciam ali; e essas aves, eles a cozinhavam do jeito mais diáfano e satisfatório numa fogueira na parte traseira do Rinoceronte. Uma multidão de Cangurus e Garças-Azuis os acompanhou, com curiosidade e satisfação; desse modo eles nunca mais precisaram de companhia e seguiram em frente, por assim dizer, numa espécie de procissão profusa e triunfante. Assim, em menos de dezoito semanas eles chegaram em casa sãos e salvos, onde foram recebidos pelos pasmados parentes com alegria e desdém. Quanto ao Rinoceronte, em sinal de grata felicidade que lhe tinham, mataram-no e o empalharam imediatamente e o colocaram então do lado de fora da porta da casa de seus pais como um diáfano limpa-pés. (Fragmento de "A História de Quatro Criancinhas Que Deram a Volta ao Mundo", texto que integra "Conversando Com Varejeiras Azuis" de Edward Lear)