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Ferreira Gullar, 86 anos: livro é um longo poema de exílio escrito entre maio e outubro de 1975 na cidade de Buenos Aires



Em janeiro de 2016 a editora Companhia das Letras assinou contrato com Ferreira Gullar sobre os direitos de publicação de sua obra que estava nas mãos da editora José Olympio desde a década de 1970.
Dando início ao projeto de reedição de 17 livros do poeta maranhense, a editora coloca essa semana nas livrarias o primeiro volume: "Poema Sujo". Publicado originalmente há 40 anos, em 1976, "Poema Sujo" representa um marco na literatura de Ferreira Gullar, seu livro mais impactante e mais popular (pode-se encontrar até banda de rock chamada Poema Sujo). Uma narrativa poética que Gullar nomeou de "poema-limite". Em suas palavras, criou os versos como quem faz a última coisa da vida: "Era a experiência da vida toda, da memória, da perda, da recomposição do mundo perdido e do amor à vida".
O livro é um longo poema de exílio escrito entre maio e outubro de 1975 na cidade de Buenos Aires. Por questões políticas com a ditadura militar instalada no Brasil em 1964, Ferreira Gullar viveu exilado entre 1971 e 1976. Passou pela França, Chile, Peru, fixando residência na Argentina onde atuou como professor de língua portuguesa.
Segundo a lenda, os originais de "Poema Sujo" foram lidos por Vinícius de Moraes na Argentina. Empolgado com o material, Vinícius se encarregou de convencer Gullar de que o material merecia publicação imediata e tratou de contrabandear o manuscrito para o Brasil entregando-o nas mãos do editor Ênio Silveira.
"Poema Sujo" pode ser descrito como uma viagem pela memória utilizando os instrumentos da lucidez e da alucinação. A memória das impressões mais impactantes dos primórdios se mistura com as percepções do presente. Gullar faz uso de vários mecanismos de linguagem para expor uma espécie de catarse poética diante de uma situação insuportável, de um limite próximo do abismo. Nessa força, "a verdade que comove", reside o grande sentido do poema.
A ideia de sujeira que começa no título e se prolonga através do fluxo de consciência pode fazer transparecer que tudo se resume num longo poema sem lapidação, cheio de impurezas, ciscos e restos de palavras. Mas Gullar esclareceu as coisas da seguinte maneira: "Tem uma coisa, nesse poema, que eu não entendi quando escrevi. Aliás, na hora eu nem sabia por que se chamava ‘Poema Sujo’. Só sei agora, faz pouco tempo: é porque eu pego o que tem de escuro, de sujo, as cadeiras velhas, os armário velhos, e coloco uma luz. Vou até lá embaixo, no fundo, na sujeira, e subo trazendo tudo junto: o que é poesia e o que não é poesia."
BIOGRAFIA
Aos 86 anos de idade, Ferreira Gullar é considerado um dos grandes poetas da literatura brasileira. Nasceu em São Luiz do Maranhão em 1930. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951 onde publicou, com grana do próprio bolso, seu primeiro livro, "A Luta Corporal".
Sua biografia passa por diversas fases. Começa fazendo parte da primeira etapa da Poesia Concreta para, logo em seguida, romper com o concretismo e criar outro movimento, o da Poesia Neoconcreta. Após entrar de cabeça nos movimentos de esquerda, integra o CPC (Centro Popular de Cultura) e funda, em 1964, o Grupo Opinião de teatro, ao lado de Oduvaldo Viana Filho. Após voltar ao Brasil do exílio, torna-se um destacado crítico de artes plásticas. Pouco se sabe, mas Gullar foi um dos roteiristas do seriado "Carga Pesada", exibido pela Rede Globo entre 1979 e 1981, com Antônio Fagundes e Stênio Garcia nos papéis de Pedro e Bino.
Curiosamente, no meio da catarse dos versos de "Poema Sujo", surgem estrofes tradicionalmente organizadas em rimas. Trata-se da letra que Ferreira Gullar escreveu para a clássica "Bachiana Brasileira n.2" do compositor Heitor Villa-Lobos: "lá vai o trem com o menino / lá vai a vida a rodar / lá vai ciranda e destino / cidade e noite a girar / lá vai o trem sem destino / pro dia novo encontrar / correndo vai pela terra / vai pela serra / vai pelo mar / cantando pela serra do luar / correndo entre as estrelas a voar / no ar".

Serviço:
"Poema Sujo"
Autor – Ferreira Gullar
Editora – Companhia das Letras
Páginas – 120
Quanto – R$ 34,90

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(...) Como se perdeu o que eles falavam ali mastigando mastigando feijão com farinha e nacos de carne e diziam coisas tão reais como a toalha bordada ou a tosse da tia no quarto e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa janela tão reais que se apagaram para sempre Ou não? Não sei de que tecido é feito minha carne e essa vertigem me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiro de gás e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama, ou dentro de um ônibus ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico acima do arco-íris perfeitamente fora do rigor cronológico sonhando Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas coberto de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do jantar, voais comigo sobre continentes e mares E também rastejais comigo pelos túneis das noites clandestinas sob o céu constelado do país entre fulgor e lepra debaixo de lençóis de lama e terror vos esgueirais comigo, nessas mesas, armários obsoletos gavetas perfumadas de passado, dobrais comigo as esquinas do susto e esperais e esperais que o dia venha E depois de tanto que importa um nome? Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo: te chamo de aurora te chamo de água te cubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema nas aparições dos sonhos (...) (Fragmento de "Poema Sujo", de Ferreira Gullar)