Numa época em que velocidade e novidade são cultuadas como deuses, desejar o arcaico é quase um crime. E é justamente esse tipo de desejo que Nélida PiÀon defende em ''Livro das Horas'', sua nova obra que acaba de chegar às livrarias pela editora Record.
''Pretendo ser arcaica, não fazer parte dos tempos atuais.'' Com essa frase a escritora cariosa expressa, aos 75 anos de idade, a sensação de não pertencer ao século 21 entupido de novidades velozes. Dizendo-se ''presa fácil da memória'', percorre os labirintos das lembranças para deixar claro que sua leitura dos sentimentos humanos não encontra espaço nos dias de hoje. Faz parte de um tempo suspenso.
Apesar de se apresentar como literatura memorialística, ''Livro das Horas'' não se encaixa num único gênero. Memórias, autobiografia, diário, divagações, reflexões, ensaio e apontamentos aparecem lado a lado num mosaico que tudo suporta. Tudo de maneira fragmentária e sem ordem cronológica.
Os admiradores de Nélida PiÀon que procurarem revelações da vida íntima da escritora baterão com o nariz literalmente na porta. Sua vida privada e íntima aparece resguardada a sete chaves. As relações amorosas são todas sepultadas pelo silêncio. O máximo de intimidade que a autora consegue revelar é seu amor por um cachorrinho de estimação chamado Gravetinho: ''Amo Gravetinho. Meu mote atual reduz-se em dizer: eu não estava preparada para este amor''.
A autora nasceu no Rio de Janeiro em 1937, filha de imigrantes espanhóis de origem galesa. Na infância chegou a residir na pequena aldeia espanhola dos avós, retornando ao Brasil com 12 anos de idade. Essa experiência aparece em ''Livro das Horas'' com marcas profundas.
A escritora Clarice Lispector (1920 - 1977), da qual Nélida foi grande amiga ao longo de décadas, merece alguns poucos episódios. Um dos relatos retrata as infindáveis vezes que a autora acompanhou Clarice em visitas a videntes e cartomantes. E se, por algum motivo, as previsões não se cumpriam no futuro, a culpa era dos acontecimentos, não das que os previam, na visão de Lispector.
Nélida PiÀon já foi chamada várias vezes de ''dama da literatura brasileira''. Eleita para a Academia Brasileira de Letras em 1989, foi a primeira mulher a presidir a entidade em 1996. Também foi a primeira mulher a receber o prêmio mexicano Juan Rulfo de Literatura em 1995. Não seria exagero afirmar que é mais lida em países de língua hispânica do que em solo brasileiro. Exímia conferencista, já correu os mais variados países falando sobre literatura.
O que mais merece atenção em ''Livro das Horas'' reside na capacidade poética da narrativa de Nélida, não em seu cunho memorialístico. As reflexões que traça dos sentimentos humanos apontam na direção de uma sabedoria que abarca toda a humanidade. No alto de seus 75 anos, consegue vislumbrar elementos mais abrangentes do que detalhes do cotidiano.
Há um mergulho, repleto de eclipses, onde só a alma pode alcançar. Ao mesmo tempo em que distrai o leitor com bobagens contando que comeu um cachorro-quente numa barraquinha de rua de Nova York, deixa claro que a felicidade está ancorada em mil definições incertas e imprecisas. E vai além: ''O mundo se agita de forma imperceptível e mal se escuta o suspiro de uma mariposa que voa no afã de pertencer a Terra''.
''Livro das Horas'' parece ser, na realidade, dois livros que procuram se misturar sem resultado. Um, o livro que se esconde atrás do gênero memorialístico. Outro, aquele que realmente interessa em prosa poética, o livro que faz jus ao título que remete aos antigos livros de prática e reflexão religiosa. Nesse caso, a religiosidade é encarada como reflexão sobre a vida e seu entendimento. Os labirintos humanos que cada pessoa precisa percorrer para vislumbrar uma síntese, mesmo que utópica.
No centro de tudo, a palavra. O verbo dentro de um favo sujeito aos quatros ventos. A escrita que uma mulher devota à palavra.

Serviço:
- ''Livro das Horas''
Autor - Nélida PiÀon
Editora - Record
Páginas - 208
Quanto - R$ 39,90

Fragmento:
Sou moldada pelo sentido trágico da vida. Abono a crença de que a vida é um espetáculo grotesco, hediondo, belo, extraordinário, tangido pela aventura e pelos lances de fantasia.
Em cada veia, me perpetuo, ressoa a marca do meu eu. Sob o culto do desejo, que provém de quem está do lado oposto da caçada, o amor talvez prospere, o corpo tarda em oxidar-se. Pois, se não se conta com o amor, não há equivalência entre o mundo e o meu ser. A matriz da paixão apazigua a nostalgia.
Na sequência deste infindável combate, a sombra do sagrado permeia o corpo que no ato carnal serve ao amor. E, através da mediação da fé, tento corresponder aos reclamos da esperança, mas falho comumente.
No cumprimento de minha jornada, aspiro tão somente ser guardiã de mim mesma.
(Fragmento de ''Livro das Horas'' de Nélida PiÀon)