A memória geralmente é considerada a capacidade das pessoas lembrarem-se de fatos e acontecimentos Um registro da realidade que permanece nas lembranças de cada um
Descrita desta forma, a memória parece algo próximo de uma fotografia da realidade guardada nos arquivos das lembranças Uma imagem que corresponde exatamente aos acontecimentos passados Quase uma matemática que transforma as lembranças em fiéis representações do real
O detalhe é que tudo isso parece ser um tremendo engano Cada vez mais vem ganhando força a hipótese de que a lembrança, na verdade, seria uma fabricação pessoal da realidade Lembrar seria um ato de construir uma nova realidade a partir dos estímulos da memória, uma reconstrução do passado
A partir dessa hipótese, a lembrança seria uma ficção A memória seria uma ficção Nada mais do que uma criação individual, íntima e particular Uma criação que não teria nenhuma fidelidade para com a realidade dos acontecimentos
Em seu novo livro de contos, ''O Tempo Envelhece Depressa'', o escritor italiano Antonio Tabucchi percorre esse território, elege as lembranças como criações de realidades muito maiores do que os próprios fatos
Lançado pela editora Cosac Naify, o livro traz nove contos que percorrem, cada um a seu modo, a noção de tempo enquanto engrenagem da memória Histórias onde o tempo atua como um removedor de neblina, um instaurador da clareza ao longo de cada passo
Na narrativa de Antonio Tabucchi, a história em si não é o componente principal, mas as representações que ela é capaz de revelar através das sutilezas Como se a névoa presente na realidade, aos poucos e lentamente, deixasse espaço para um horizonte a caminho da clareza, do límpido
Em todo esse processo, a clareza se apresenta de mãos dadas com a melancolia Aquela melancolia capaz de potencializar as percepções da vida, capaz de fazer do passado um alimento de primeira necessidade na saliva das lembranças
Em alguns contos, as descobertas impulsionadas pela compreensão da memória como ficção oferecem a nítida impressão de que o peso da vida não é extremo De que a leveza pode ser um dos componentes da lembrança, já que é de sua natureza ser construída através de elementos rarefeitos, que escorrem pelos vãos dos dedos
E a ideia de que a memória é uma construção ficcional íntima nunca anda sozinha As pessoas, nas mais variadas situações, recorrem às lembranças para conferir sentido ao presente e suas existências no tempo Um pouco mais além, só a ficção, ou o recorte seletivo das lembranças, teria a capacidade de oferecer a clareza e a limpidez que a mais pura realidade não conseguiria oferecer
Nascido em 1946, em Vecchiano, província da cidade de Pisa, Antonio Tabucchi é um dos principais nomes da literatura europeia contemporânea Professor de Literatura Portuguesa, é estudioso e tradutor da obra de Fernando Pessoa Além de ''O Tempo Envelhece Depressa'', possui nove livros publicados do Brasil: ''Anjo Negro'' (Rocco, 1994), ''Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa'' (Rocco, 1996), ''Sonhos dos Sonhos'' (Rocco, 1996), ''Mulher de Porto Pim'' (Difel, 1997), ''A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro'' (Rocco, 1998), ''Está Ficando Tarde Demais'' (Rocco, 2001), ''Requiem'' (Rocco, 2001), ''Os Voláteis do Beato Angélico'' (Rocco, 2003) e ''Tristaro Morre'' (Rocco, 2007)


Como a noite pode se fazer presente Feita só de si mesma, é absoluta, cada espaço é seu, impõe-se com sua mera presença, com a mesma presença do fantasma que você sabe estar bem na sua frente, mas está por todo o lado, inclusive às suas costas, e caso se refugie num pequeno foco de luz ficará prisioneiro, porque ao redor, como num mar que circunda seu pequeno farol, está a insuperável presença da noite
(Fragmento do conto ''Clof, Clop, Clofete, Clopete'' que integra o livro ''O Tempo Envelhece Depressa'' de Antonio Tabucchi)


SERVIÇO

O Tempo
Envelhece Depressa
Autor – Antonio Tabucchi
Editora – Cosac Naify
Tradução - Nilson Moulin
Páginas – 160
Quanto – R$ 45