Para Jean Starobinski os sentimentos e as doenças também disseminam-se pelas palavras
Para Jean Starobinski os sentimentos e as doenças também disseminam-se pelas palavras | Foto: Reprodução



Todo ser humano, em algum momento da existência, já foi visitado por ela. Algo como um anzol que entra no coração, atravessa o oceano e sai pela boca. Alguma coisa como uma farpa que entra pelo fígado e escapa pelos olhos na forma de um pássaro.

Todo ser humano, ao longo da história das civilizações, já sentiu um tipo de dor que não acontece no corpo, mas se alonga pela alma, pela mente, sem explicações que a iluminem. Um sentimento que alguns chamam de tristeza, outros de melancolia, outros ainda de nostalgia.

Em "A Tinta da Melancolia – Uma História Cultural da Tristeza" o ensaísta suíço Jean Starobinski demonstra que é possível traçar uma história desse sentimento ao logo dos séculos. A proposta do autor não está em apenas apresentar história de um sentimento, mas como a ideia de tristeza foi se modificando ao longo do tempo. No princípio a melancolia era considera uma doença, logo um sentimento que necessitava de cura. Tornou-se, portanto, um território da medicina.

Enquanto doença, não era nada parecida com uma apendicite ou uma úlcera no duodeno. Estava mais próxima das "doenças da alma", ou "doenças da civilização", a partir da percepção de que as doenças humanas não eram mais puramente moléstias naturais. Então passa a ser encarada como elemento cultural: "O paciente suporta seu mal, mas também o constrói, ou o recebe de seu meio. O médico observa a doença como um fenômeno biológico, mas, ao isolá-la, ao designá-la, ao classificá-la, faz dela um ser da razão e a expressa no momento particular dessa aventura coletiva que é a ciência. Do lado do doente, como do lado do médico, a doença é um fato da cultural, e muda com as condições culturais.

A nostalgia, por exemplo, viveu algum tempo como doença, sinônimo da melancolia. O próprio significado da palavra nostalgia de alterou. Se nas origens designava "retorno da dor", passou a representar "saudade da terra natal". Soldados, após longos períodos na linha de batalha, deixaram de ser abatidos pela melancolia para serem abatidos pela nostalgia, igualmente uma doença que precisava de tratamento.

Em "A Tinta da Melancolia", recém lançado pela editora Companhia das Letras, Jean Starobinski demonstra como a linguagem possui a capacidade de potencializar doenças. Antes de a tristeza ser nomeada como melancolia pela ciência, não havia melancólicos no mundo. A partir do momento em que a palavra é criada e colocada em uso, a doença passa a existir e os melancólicos se multiplicam mundo afora.

Outro exemplo está no fato da melancolia perder espaço no momento em que nasce a depressão, ou melhor, quando a depressão é nomeada como doença. Para Jean Starobinski, há uma intrínseca relação entre sentimento e linguagem: "Assim que o nome de um sentimento é trazido à luz (como a moda sabe fazê-lo), a palavra, por sua eficácia, contribui para fixar, propagar, generalizar a experiência efetiva de que é o indício. O sentimento não é a palavra, mas só pode se disseminar através das palavras."

"A Tinta da Melancolia" é uma confluência entre medicina e literatura, entre filosofia e ciência. Jean Starobinski, nascido em 1920, em Genebra, atuou como médico e psiquiatra antes de entrar de cabeça nos estudos literários. Atuou como professor em várias universidades europeias ensinando literatura e história da medicina. Ao se aposentar em 1985, passou a se dedicar à escrita de ensaios sobre literatura, filosofia e história das ideias.

Os poetas já chamaram a melancolia de exílio da alma, lado escuro do meio-dia, bile negra, doença da alma, coração da noite e outras coisas mais. Algo como um anzol que penetra no coração, atravessa oceanos e foge pela boca na forma de um pássaro. A matéria prima da poesia segundo Starobinski.

Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - A escuridão do meio-dia



SERVIÇO
"A Tinta da Melancolia – Uma História Cultural da Tristeza"
Autor – Jean Starobinski
Editora – Companhia das Letras
Tradução – Rosa Freire d’Aguiar
Páginas - 568
Quanto – R$ 74,90 e R$ 44,90 (ebook)

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