Existem coisas com a capacidade tanto de unir como a de separar. Amor é uma delas. Família outra. Em seu novo romance, ''Divisadero'', o escritor canadense Michael Ondaatje coloca a união e a separação num único ponto do tempo e do espaço. Tece uma história onde aquilo que parece unir na realidade separa, e aquilo que possui todas as possibilidades de separar, na verdade une.
O foco central de ''Divisadero'', lançado pela editora Companhia das Letras, é a história do drama familiar dos irmãos Anna, Claire e Coop. A partir desse foco central Michael Ondaatje insere a figura do poeta francês Lucien Segura para narrar a história de quatro personagens que se cruzam por obra do acaso.
Ao nascer, Anna perde a mãe devido a complicações do parto. O pai, desnorteado com os acontecimentos, além de levar a criança para a fazenda onde mora, leva também uma outra menina, Claire, nascida no mesmo dia, no mesmo hospital, cuja mãe também morreu na mesa de parto.
Meses depois, ocorre uma chacina na fazenda vizinha. O único sobrevivente é um garotinho chamado Coop. O pai de Anna acolhe também o menino e passa a criar as três crianças como se fossem irmãos. Tudo transcorre em meio à tranquilidade rural até o dia em que, com os filhos adolescentes, ele descobre que Anna e Coop vivem um secreto caso e amor.
Com a fúria devorando as entranhas, o pai coloca para fora uma violência incontrolável ao pegar Anna e Coop na cama. Um episódio que representará a divisão permanente da família e de todos os laços afetivos. Anna foge de casa e percorre o mundo até se tornar uma bibliotecária pesquisadora da vida e obra do poeta Lucien Segura. Coop abandona a fazenda e passa a vagar pela Califórnia como jogador de cartas. Claire parte para a cidade grande para estudar e se tornar procuradora pública.
A partir da separação dos irmãos, e a extinção dos laços familiares, Michael Ondaatje cria um romance tipicamente contemporâneo. Com uma narrativa fragmentária, trabalha com blocos narrativos interligados onde presente e passado são tratados como elementos de um mesmo espaço-tempo. ''Divisadero'' possui a estrutura narrativa mais ousada de todos os romances do autor. A figura do narrador é pulverizada, ela deixa de apresentar um único ponto de referência para revelar vários pontos. Não há a preocupação de fechar as fendas da história apresentada, há na verdade o interesse de criar fendas e mais fendas. Vãos e vazios.
Michael Ondaatje nasceu no Sri Lanka em 1943. Com poucos anos de vida mudou-se com os pais para a Inglaterra. Na adolescência emigrou para Canadá, onde vive até hoje como cidadão naturalizado atuando como professor universitário. Tornou-se conhecido mundialmente em 1996 quando seu romance ''O Paciente Inglês'' foi transformado em filme por Anthony Minghella ganhando nove Oscar da academia holywoodiana.
Embora seja mais cultuado como romancista, sua produção poética é ampla. Publicou 12 livros de poesia e cinco romances. Sua produção poética ainda permanece inédita em português, mas os romances foram todos publicados no Brasil: ''O Paciente Inglês'' (Editora 34, 1994) ''Na Pele de Um Leão'' (Editora 34, 1998), ''Bandeiras Pálidas'' (Companhia das Letras, 2000), ''Buddy Bolden’s Blues'' (Companhia das Letras, 2001) e agora ''Divisadero''.
Histórias de irmãos que se separam pelas mãos do destino entopem a literatura universal. ''Divisadero'' não segue caminhos já trilhados e batidos nesse sentido. Primeiro, porque não aposta uma frase na possibilidade de reencontro, de uma nova união. Cada um dos irmãos seguirá sua trajetória como um errante do próprio passado. Só a memória os aproxima, e mesmo assim, cada um a seu modo procura lançar as lembranças no bueiro mais próximo. Segundo, porque a narrativa construída por Ondaatje não conclui o desenho dos personagens. Ela oferece essa oportunidade ao leitor, no seio da desordem, a possibilidade de percorrer as fendas e os vazios que relembram que aquilo que une é o mesmo que separa.

  Com a memória, com a reflexão de um eco, um portão se abre nos dois sentidos. Podemos cercar o tempo. Um parágrafo ou um episódio de outra era irá assombrar-nos à noite, assim como podem fazê-lo as palavras de um desconhecido. A consciência de uma bandeira tremulando rumorosamente na sua cor me conduz até uma nevada súbita em Petaluma. Assim como o mapa dobrado nos coloca ao lado de outra geografia. Assim eu encontro a vida de Coop, de minha irmã e de meu pai em toda parte, como eles talvez ainda se perguntem por minha ausência, onde quer que estejam. Não sei. É a fome, aquilo que não temos, que nos mantém juntos.
(Fragmento de ‘Divisadero’ de Michael Ondaatje)



Serviço
- Divisadero
Autor - Michael Ondaatje
Editora - Companhia das Letras
Tradução - Augusto Pacheco Calil
Quanto - R$ 53 (312 págs.)