A (in)existência de Deus, a felicidade, o amor. Um Drummond relaxado e afetuoso fala sobre esses e outros temas em ''Maria Julieta entrevista Carlos Drummond de Andrade'', CD que traz o registro em MP3 e MP4 de uma entrevista concedida por ele em janeiro de 1984 (três anos antes de sua morte). A entrevistadora era Maria Julieta, a filha única e amada do poeta, que a publicou dias depois no jornal ''O Globo'', com o qual colaborava.
A conversa de noventa minutos, que se deu na sala de jantar do apartamento de Drummond, em Copacabana, foi gravada numa fita cassete. O material foi digitalizado, tratado, para redução de ruídos, e transportado para um CD por iniciativa de Pedro, filho de Julieta. ''É um documento importante para quem quer estudar a vida de Carlos. Ele ficou muito mais à vontade do que ficaria com alguém que não conhecesse'', diz Pedro.
Drummond relutou em dar a entrevista. ''Não queria que parecesse pistolão'', lembra o neto. Logo no início da gravação, Julieta - que era escritora, professora e tradutora - pergunta por que ele voltara atrás. O pai responde: ''Eu não sou tão avesso a entrevista. Sou avesso às entrevistas chatas, quando as pessoas me perguntam se eu me sinto realizado, quantos livros eu publiquei e qual é a mensagem''.
O autor de ''Quadrilha'' discorre sobre o amor: ''Eu não acredito no amor como uma espécie de fatalidade biológica pela qual as pessoas se juram um amor e se entregam uma à outra irremediavelmente, até o infinito. Acredito no sentimento amoroso que vai de uma criatura à outra e que vai além dessa criatura, envolvendo a natureza, o universo''.
Ao falar de Deus, diz: ''Você não pode imaginar como Deus me chateia. Eu não creio nele. Creio numa organização natural para tomar o nome de Deus. Esse argumento que não era possível existir nada sem um poder gerador que seria Deus não resolve. Quem gerou Deus?''
Então com 82 anos, Drummond faz uma avaliação de sua vida e formação. ''Eu não estudei, praticamente. Eu fico muito espantando quando as pessoas falam dos meus conhecimentos, da minha sabedoria. Não tem nada disso, isso é palhaçada. Eu fui muito vadio (...) Fui muito bem servido pela vida. Não fiz força para viver, não sofri grandes traumas.''
O tom é íntimo. Pai e filha tinham uma ligação fortíssima - desgostoso, ele morreu 12 dias depois dela. Julieta o chama, por vezes, de ''papai''. Fala de si própria, faz referências a fatos vividos pelos dois. ''A vida foi boa?'', pergunta. ''Não posso me queixar. Mas dizer que a vida foi boa, foi feliz é um exagero. Eu não conheço vida feliz. A felicidade é um estado de espírito transitório por natureza. Nós temos momentos de plenitude, divinos, celestiais, mas, ao lado disso, tem a rotina, a dor de barriga, a dor de dente, a conta por pagar'', esclarece Drummond.
Numa passagem engraçada para o ouvinte de hoje, o poeta reclama do assédio sofrido por escritores como Jorge Amado. O baiano, ele lembra, ''não podia ficar em casa, porque parava um ônibus interestadual trazendo turista que olhava a cara dele como se fosse um fenômeno da natureza''. Drummond não podia prever que viraria estátua na Praia de Copacabana, ponto de parada de hordas de visitantes de máquina fotográfica nas mãos...
O CD, que pode ser encontrado em livrarias, traz ainda duas faixas que já haviam sido incluídas em ''E agora, José?'' - remix, da mesma gravadora Luz da Cidade. Nelas, Drummond vira rapper, declamando ''José'' e ''No Meio do Caminho'' com uma batida ao fundo. Mais informações no site www.luzdacidade.com.br.