Imagem ilustrativa da imagem Em nome da mãe
| Foto: Marcos Hermes/ Divulgação
Matheus Nachtergaele: "Poema que achava triste eu percebo irônico ou uma fala que eu achava irônica eu percebo agressiva; algo que eu fazia com tristeza eu percebo comédia"



"O espetáculo é simples assim: um homem (que por acaso é um ator) diz no palco as palavras escritas por sua mãe. Um violão (não por acaso, pois Maria Cecília amava os violões) o acompanha. É só isso, se isso for pouco", descreve o ator Matheus Nachtergaele sobre o monólogo "Processo de Conscerto do Desejo", espetáculo que abre hoje a edição do Festival Internacional de Londrina (FILO) deste ano. Não por acaso, também, o título traz a palavra 'conscerto' e as duas possibilidades de escrita que sempre são confundidas na língua portuguesa. "Aqui, elas se mesclam vertiginosamente." No espetáculo, o ator faz um mergulho em sua própria história, encarnando o papel de uma jovem poetisa, sua própria mãe, e pequena obra deixada por ela. "Foi uma maneira de juntar tudo (poesia e música) e celebrar num ritual profano, como só o teatro pode ser. Procuro jogar luz no que um dia foi escuro."
Em uma hora, Matheus Nachtergaele apresenta poemas escritos por Maria Cecília Nachtergaele, numa espécie de concerto, já que é acompanhado dos músicos Luã Belik e Henrique Rohrmann que recriam músicas que ela gostava de tocar e ouvir. Para dar vida ao personagem real, transpõe a dor, angústia, ironia e alegria de uma jovem mulher, que viria a se suicidar pouco tempo depois, quando ele tinha apenas três meses de vida. "Na adolescência, meu pai me contou a verdadeira forma como minha mãe havia morrido. Em seguida, me entregou seus poemas. Tomei um bofetão da vida e, ao mesmo tempo, um grande presente, porque não conheci minha mãe, não me lembro dela. Mas, naquele momento, estava recebendo, apesar do susto, a fala dela e cheia de subjetividade. Então, de uma certa maneira, eu fui descobrindo-a a partir daqueles poemas."
Em posse do material leu, releu, decorou, chorou, riu. E depois tudo de novo. E de novo. Por muito tempo foi assim; por trinta anos foi assim. Até que percebeu que o episódio não era mais tão doloroso. "De uns três anos para cá, eu sinto que o assunto do suicídio da minha mãe foi resolvido. Digo do ponto de vista mais neurótico mesmo. Claro, depois de muita sessão de análise e muito porre em mesa de bar. Me senti, então, com vontade de homenagear e de celebrar." A vontade, no entanto, não definiu de que forma isso iria acontecer. "Eu pensava como mostrar: se publicava um livro, se dirigia uma amiga. Por fim, percebi que era eu mesmo quem tinha que falar; aproveitar quem eu sou e dar voz à minha mãe, e, finalmente, fazer alguma coisa com ela, já que não tivemos tempo. Esses poemas são um dos motivos de eu ser quem sou", relata o ator.
Convidado a participar do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana, em julho de 2015, decidiu mostrar, pela primeira vez, os poemas. "Não tinha nada pronto, mas tinha os poemas. Eles aceitaram. Na primeira apresentação, apenas li os poemas; não me arrisquei a falar de cor, apesar de sabê-los. Ordenei-os numa sequência escolhida por mim para apresentar Maria Cecília, o tamanho da dor dela e, ao mesmo tempo, celebrar a beleza da escrita de uma jovem menina, uma jovem mãe. As pessoas ficaram tão profundamente envolvidas e emocionadas que eu entendi que aquilo não dizia mais respeito só a mim." Começava sua jornada rumo à formatação da peça que será apresentada hoje.
Depois de tantos festivais e temporadas, o ator diz que o espetáculo já tem um coluna vertebral bem forte, "mas como são poesias e músicas, é feito dia a dia, à medida em que o público vai se emocionando e eu também". "Tenho todo um trabalho técnico, pois é quase um teatro-dança, no qual há bastante movimentação corporal e canto. Trabalho, então, bastante a voz e o corpo. Mas, de vez em quando, uma fala, um poema se mostra especialmente emocionante algum dia para mim. Eu entendo alguma coisa que não tinha entendido ainda; poemas que achava triste eu percebo irônico ou uma fala que eu achava irônica eu percebo agressiva; algo que eu fazia com tristeza eu percebo comédia. Eu vou descobrindo junto com o público. Tem sido muito lindo."

Confira entrevista à FOLHA

FOLHA - Mergulhar nesse universo pessoal e tão íntimo exigiu mais de você como ator?
Matheus Nachtergaele - Não, o problema teria sido fazer isso precocemente. Talvez eu pudesse sofrer mais que o necessário. Hoje em dia eu faço com alegria mesmo. Acredito que a arte bonita é depoimento pessoal. Então, o fato de os poemas serem da minha mãe que me acompanham tão profundamente e intimamente, fazem parte de um desejo meu artístico de dizer o que o mundo é para mim. E nesse momento, com essa peça, dizer que, apesar das tristezas profundas, a vida tem belezas e que a pérola é o sofrimento da ostra. Para se defender ela cria uma camada protetora que é a pérola. Só que a pérola é bruta; quando sai da ostra a gente tem que trabalhar para ficar redonda. É isso que eu faço, eu ordenei os poemas, as músicas, escolhi os músicos e tentei deixar a pérola bem polida para as pessoas verem o brilho que tem na dor.

FOLHA - Durante o polimento você encontrou algum desafio?
Matheus Nachtergaele - Talvez o maior desafio tenha sido o fato de eu conhecer as poesias tão bem. Por isso, tive que desconfiar de mim pela minha relação afetiva com os textos. E, depois, tentar trabalhar do ponto de vista como ator e diretor mesmo, não deixando que a minha neurose interferisse na construção do trabalho. Por mais que exista uma queixa minha bem colocada aí, estou aqui fazendo o que é possível com o que me restou da minha mãe. O grande desafio, não só na construção do espetáculo, mas sempre que eu vou entrar em cena, toda vez que o terceiro sinal toca, é dizer: "não tenha autopiedade, tente ser poeta e não um filho que perdeu a mãe".

FOLHA - Existe algum texto que comove mais?
Matheus Nachtergaele - Dependendo da fase da minha vida eles foram comovendo mais ou menos. Assim também na peça. Às vezes um texto que eu não dava tanta bola, se revela tão bonito num dia específico numa cidade. É vivo. Mas o teatro tem essa característica. O que eu acho muito bonito dessa peça é que além do depoimento pessoal, eu faço um tipo de teatro no qual sempre acreditei. Do qual eu gosto muito, que é de certa maneira ritual, com poucos elementos e todos ao vivo em cena. São pouco adereços, pouco cenário, a música acontece em cena, nada eletrônico, tudo muito ritualístico. Com o advento de todas as tecnologias, do cinema, da televisão, internet, pouca coisa sobrou para o teatro. Mas o que sobrou para o teatro é muito lindo. Todo tempo tento me lembrar: "Não tente competir com o cinema. Faça aquilo o que só o teatro pode fazer".

FILO 2016
"Processo de Conscerto do Desejo" com Matheus Nachtergaele
Quando: Hoje e amanhã, às 20h30
Onde: Teatro Marista (R. Cristiano Machado, 240)
Quanto: R$ 30 e R$ 15
Ingressos podem ser adquiridos pelo site www.filo.art.br ou na bilheteria do FILO no Royal Plaza Shopping (Rua Mato Grosso, 310, - 3º piso)