Imagem ilustrativa da imagem CÉLIA MUSILLI: O tempo das falas inflamadas
| Foto: Marco Jacobsen



Se você postar na rede social uma receita de bolo, logo aparece alguém discordando da quantidade de manteiga ou acusando a farinha de ser sempre do mesmo saco. Pelo viés das teorias de Descartes ou pela opinião dos convidados do programa do Jô, não falta quem alinhe argumentos sobre isso e aquilo. Poucos percebem o limite entre ser crítico e ser chato.
O fato é as redes ajudam a construir um mundo de "certezas", todo mundo é dono da verdade, e ai daquele que ponderar sobre possibilidades, abstraindo o pensamento daquilo que julgamos mais importante por ser racional, segundo a nossa ótica. Até brincadeiras podem ser mal compreendidas e virar assunto sério.
Nem sempre dois mais dois são quatro, a não ser para quem vê o mundo do seu quadradinho, mas a elegância de debater sem ofender é uma arte pouco difundida hoje. Minha impressão – só impressão – é que abrimos a caixa de Pandora nacional e todos os vícios escaparam de uma vez, grudaram na pele dos meus compatriotas e só com muito custo vamos recuperar o humor. Isso não teria importância se ficasse só no campo da política, que é o campo inflamado no momento, provocando uma dor de cotovelo enorme em quem saiu e uma negligência arriscada em quem "se acha" no comando. Mas a discussão vai além.
É preciso contar com as variáveis, com o sim e o não. Colocar a dúvida como balizadora das verdades completas, fechadas nas caixinhas das certezas. É preciso não olhar só para a direita, nem só para a esquerda, sobretudo é preciso brincar. Só voa quem tem a capacidade de abstrair o pensamento e isso vale para tudo: da arte à ciência, da ciência à política.
Nas relações pessoais não é diferente. Coloque um pouco de abstração na sua vida, arranje um jeito de não se fixar no senso comum e a corda da criatividade será ampliada com ideias novas, sem os vícios partidários, dos times, dos amigos ou da família. Compreender as diferenças é mais produtivo do que se agarrar a ideias como musgo, velho, viscoso, apegado a paredes ideológicas e sem espaço para renovação. O que se fecha não respira. E no momento o Brasil está fechado em compartimentos, um furo na parede das iras seria um processo de cura, algo como fazer vazar um furúnculo.
Por tudo isso, deixei de discutir apaixonadamente. No momento me resguardo um pouco das rinhas, na esperança de vislumbrar horizontes sem galos de briga. Mas como disse, ainda que se publique uma receita de bolo aparecerá alguém para discordar da quantidade de manteiga, dizer que não é assim que se faz e que existe uma receita melhor. Nada contra as oposições, desde que sejam um exercício de pensamento e não de antipatias.
Neste processo político do Brasil, perdi alguns amigos por causa de opiniões. Alguns eram da esquerda, outros da direita, perderam-se de mim porque não sabem andar pelas bordas, precisam enfiar o pé no fundo das certezas, exigem isso dos outros, e eu acho que nenhum fosso compensa o mergulho de cabeça. No vale dos crocodilos da política busco apenas a travessia.
Não levo comigo nenhuma certeza, abstraio meu pensamento para apreciar a arte do equilibrismo, não proponho garantias, não caminho sobre o fio do arame com rede de proteção, nem cintos de segurança apontando caminhos para os outros. Prefiro a arte da abstração, a arte de quem se equilibra brincando, sabendo que há erros por toda parte e que eu mesma posso pisar em falso e cair da minha torre de opiniões sinceras. Arriscar-se é ouvir o outro, protagonizar o equilibrista que caminha contando com um pouco de conhecimento e um pouco de sorte. Quando trocamos a surpresa pela certeza perdemos, no mínimo, a beleza de ser livre das amarras visíveis e invisíveis.

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