Belchior: para o biógrafo, compositor pode ser colocado no mesmo patamar de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paulinho da Viola
Belchior: para o biógrafo, compositor pode ser colocado no mesmo patamar de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paulinho da Viola | Foto: Reprodução



Escrever uma biografia não fazia parte dos planos que Jotabê Medeiros havia traçado para sua vida profissional quando iniciou a carreira no jornalismo como repórter da Folha de Londrina, em 1986. No entanto, após três décadas atuando na área cultural de veículos como o jornal O Estado S.Paulo e revista Veja acabou mudando de opinião ao constatar a falta de informações aprofundadas sobre um de seus ídolos desde a adolescência, o cantor e compositor Belchior.

Há um ano e meio, o jornalista paraibano radicado em São Paulo deu início a uma longa jornada com o objetivo desvendar a misteriosa e controversa personalidade de um dos maiores artistas da história da música brasileira. Previsto para ser lançado em setembro, o livro que já estava quase pronto e tem como título "Belchior — Apenas um Rapaz Latino-Americano" acabou ganhando um capítulo adicional e imprevisto, a morte inesperada do personagem que estava desaparecido há 11 anos e que deixou o país atônito no dia 30 de abril.

"Eu já havia entrevistado mais de 100 pessoas para a biografia. Mas assim como o resto dos brasileiros fui pego de surpresa pela morte do Belchior. Naquele dia eu estava em uma chácara, sem acesso à internet, sem sinal de celular e, portanto, sem saber o que estava acontecendo. Quando retornei a São Paulo, vi que havia muita gente atrás de mim me ligando e mandando mensagens para me dar a notícia e entre elas alguns jornalistas pedindo informações sobre a vida dele. Foi um choque muito grande", relata Jotabê.

Com passagem já comprada para o Rio Grande do Sul, para onde embarcaria na tentativa de conseguir uma entrevista com o ídolo que resultaria na conclusão da biografia, Jotabê se viu obrigado a mudar sua rota e embarcar para Fortaleza e acompanhar o velório do cantor. "Um artista famoso havia feito um show no Sul e como sabia que eu estava escrevendo o livro me ligou contando que havia estado com o Belchior e me deu algumas pistas de seu paradeiro. Porém, um dia antes de embarcar meu irmão, que morava em Cianorte, morreu e fui obrigado a adiar meus planos. Quando soube da morte do Belchior, acabei indo para Fortaleza acompanhar o velório e tive a oportunidade de entrevistar novos personagens para o livro", conta.

Imagem ilustrativa da imagem Biógrafo segue Belchior até o fim



PERSONAGEM MULTIFACETADO
Jotabê conta que produziu mais de 100 entrevistas para a biografia, entre depoimentos de familiares, artistas e pessoas que conviveram com Belchior. "Tem vários relatos impactantes e reveladores. O mais interessante é que cada entrevistado descreve um Belchior diferente. É preciso juntar todas as descrições para conhecer um pouco da personalidade multifacetada que ele tinha", diz o biografo.

Apesar de já conhecer alguns episódios da carreira do ídolo, o jornalista revela ter ficado impressionado com a riqueza do material que levantou. "O Belchior costumava mentir e brincar muito nas entrevistas que concedia e ninguém ia atrás das informações para constatar ou buscar se aprofundar na veracidade dos fatos. Foi isso que me motivou a escrever a biografia, um subgênero do jornalismo que anda muito desgastada, pois há muitas histórias que poderiam ser contadas em um artigo de jornal e que acabam dando origem a livros enormes. Com o Belchior aconteceu o contrário. Afinal trata-se de um personagem muito talentoso que desapareceu no auge de seu potencial artístico e criativo", ressalta.

Jotabê Medeiros: "Talvez o sumiço possa ter acontecido também por influência, já que esse é um hábito comum na família dele"
Jotabê Medeiros: "Talvez o sumiço possa ter acontecido também por influência, já que esse é um hábito comum na família dele" | Foto: Acervo pessoal



Desaparecimento é um traço familiar
Jotabê Medeiros revela que no livro o motivo do desaparecimento do cantor ganhou suposições diversas por parte de vários entrevistados. "A minha opinião como biografo é de que o Belchior passou por um desencanto profundo com a produção industrial que tomou conta do seu universo artístico e acabou deixando-o muito aborrecido. Como ele tinha um espírito nômade e uma grande tendência ao recolhimento acabou optando por desaparecer sem deixar vestígios. Talvez esse sumiço possa ter acontecido também por influência familiar, já que esse é um hábito comum na família dele. Um irmão mais velho dele também sumiu e abandonou a família, sendo encontrado no México 14 anos depois do seu desaparecimento. Entrevistei um irmão mais novo que até brincou com esse comportamento familiar dizendo que ele mesmo era o único da família que ainda não havia desaparecido", relata Jotabê.

O biógrafo destaca no entanto que o livro sobre Belchior não pretende explorar de forma sensacionalista o sumiço do cantor. "O fato por si só já é sensacionalista. O objetivo maior da biografia não é explorar apenas esse episódio, mas passar a carreira de Belchior a limpo, narrando fatos interessantes de sua vida artística e pessoal contando, por exemplo, como algumas canções foram compostas", salienta.

O mergulho profundo na vida do ídolo fez com que a admiração que Jotabê nutria por Belchior aumentasse ainda mais. "Nunca ouvi uma música dele que não fosse uma obra-prima. As canções fazem um desabafo com profundidade sobre a condição humana. Ele era um poeta que utilizava a música como instrumento e cuja obra pode ser colocada no mesmo patamar de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paulinho da Viola. Não é à toa que a música mais tocada de Elis Regina, segundo o Ecad, é Como Nossos Pais, composta por Belchior", argumenta.

Dedicando-se nos últimos anos à pintura e à tradução do clássico "Divina Comédia", de Dante Alighieri, para uma linguagem popular, Belchior havia deixado de lado o hábito de compor. "Descobri que uma galeria de arte de Fortaleza guarda 25 telas pintadas por ele, que infelizmente deixou de gravar suas composições. Ele havia composto dezenas de canções com vários parceiros depois de seu desaparecimento, mas como não gravava essas músicas muitas delas se perderam com o tempo. É uma pena", diz o jornalista.
O motivo da morte do artista aos 70 anos, causada pelo rompimento da aorta - principal artéria do corpo humano - deixou surpreso o biógrafo do cantor. "Fiquei impressionado porque ele tinha um cuidado muito rigoroso com a saúde. Como era vegetariano, sempre carregava com ele um fogãozinho portátil para fazer suas refeições e sempre que ia a restaurantes costumava pedir permissão ao chef para ir à cozinha e preparar seus próprios pratos. Ninguém imaginava que ele pudesse ser negligente com um problema de saúde", conclui.