Caroço de Páscoa
Manga temporã amarela na mangueira, engulo meu caroço de remorso.
Menino, fazia a tarefa ligeiro pra já trepar na mangueira, e lá ficava até Vó Tiana chamar para banho e janta.

As menores mangas descascava na boca, com dentes ainda bem separados, então fiapo não ficava, e as maiores só mordia no biquinho pra mamar espremendo. Só a doce voz e a canja da Vó me faziam descer da mangueira antes das primeiras estrelas.

Naquele domingo de Páscoa, trepei na mangueira só para brincar, nem tinha mangas mais, e a Vó apareceu lá embaixo com o Tim, meu primo rapaz com enxada nas mãos. E eu, pela primeira vez contrariando a vó, estava na mangueira com uma faca. Então Tim me falou alguma coisa, retruquei, enquanto ele começava a cavar mandioca ali pertinho. Aí ele me chamou de "gão", como brincavam de se xingar os primos mais velhos, e eu nem sabia o que era gão, mas foi o bastante para lançar minha faca na sua enxada. Era dessas facas de comer, ponta arredondada... Fosse pontuda, teria varada a canela dela. Ficou cravada, o cabo balançando.

Tanta coisa em redor, e a danada da faca foi se enfiar na canela da Vó! Tim ajoelhou, sem saber o que fazer, gritando socorro, vizinha acudiu - enquanto um mico ligeiríssimo descia da mangueira, correndo até a casa da mãe e se enfiando debaixo da cama.
Cochilei, e já era noite quando mãe sentou ali do lado:

- Escuta bem. Só não vou bater em você porque no hospital sua vó ajoelhou, com a perna daquele jeito, pra me fazer prometer não relar a mão em você... Agora vai comer, ela te mandou batata-doce.

Eu tinha ferido quem me mimava! E a Vó passou semana com a perna enfaixada, eu engolindo um caroço como de manga, grande, de remorso. Até que ela chamou, falou ó, dizem que ainda não devo andar, mas quero andar já, pega ali o guarda-chuva.

Fomos andar pelo quintal, ela com o guarda-chuva como bengala, a outra mão no meu ombro, eu me sentindo homenzinho. Passamos pela mandioca ainda meio arrancada e ela perguntou se eu conseguia arrancar. Peguei a enxada, arranquei a mandioca, ela sorrindo, eu um baita homem.

Foi um passeio de poucos passos, mas a ferida se fechou. Mas na Páscoa lembro daquele dia, então engulo meu caroço de remorso, feliz; sim, feliz, por ter comigo até hoje, aqui dentro, minha doce avó.

Notícia da Chácara


O Maior dos Espetáculos

Quando mudei para a chácara – já há duas décadas, Deus! – eu não via O Maior Espetáculo da Terra, o poente; sempre gratuito, sempre último e único. Ganhando céu, ganhei também quatro luas e tantas estrelas, além das nuvens em sua dança com o vento. Quando noitinha sento no terraço, no velório da tarde Vésper acende sua vela, que, por ser planeta e não estrela, não pisca. Mas piscam os irmãos terrestres das estrelas, os pirilampos.

Se a vida é mudança, o poente parece seu mais belo símbolo, tão mutante e tão confiável, pois amanhã estará de volta. A leitura do romance Shogun, de James Clavel, já tinha me aberto a mente para o poente, mostrando como os japoneses cultuam o Sol, tanto que está na sua bandeira. Mas, morando na cidade de poucos e retalhados horizontes, eu ainda não tinha aberto os olhos para o espetáculo. Tornou-se minha hora preferida, símbolo de morte e de vida, vendo o poente como prenúncio da manhã. Por isso mesmo, é quando revejo o dia, fazendo um balanço de perdas e ganhos, e penso no que vou fazer amanhã, projeto diário que talvez só se realize em parte, como sempre sujeito a imprevistos. Mas já ganhei o poente, tão previsível no tempo quanto na forma imprevisível, artista que cada dia veste uma fantasia para nos fazer festa. Até amanhã, companheiro!