‘Vazante": uma espécie de mapa antropológico das raízes cruéis do Brasil escravagista
‘Vazante": uma espécie de mapa antropológico das raízes cruéis do Brasil escravagista | Foto: Divulgação



Brasília - Por essa a diretora Daniela Thomas não esperava: depois da recepção favorável em fevereiro, no Festival de Berlim, "Vazante", seu primeiro longa-metragem como diretora solo, foi impiedosamente atacado durante o debate-coletiva no fim de semana. Seu filme, uma espécie de mapa antropológico das raízes cruéis de um Brasil escravagista, não apenas foi rejeitado por representantes da "intelligentsia" negra presentes no festival, como esta rejeição ocorreu com reprovável agressividade e rasgos de intolerância (sic). O que, de pronto, colocou sob suspeita a validade dos argumentos que contestam a legitimidade do filme.
Até agora codiretora (com Walter Salles) de alguns longas ("Terra Estrangeira", "O Primeiro Dia" e "Linha de Passe", durante quase todo o debate Daniela permaneceu acuada no palco do anfiteatro que acolhe os debates, e foi submetida a um duro, quase humilhante interrogatório com requintes de inquérito policial, diante da ira, da grosseria e da falta de civilidade dos inquisidores – como se ela, seu filme e dois séculos de status quo fossem os responsáveis pela trágica brutalidade que se instalou no Brasil colônia e que gerou a desigualdade e opressão que se sabe. O fato é que, se o âmbito de um festival de cinema do porte e tradição de Brasília pode e deve estar entre os cenários mais adequados para se debater o infame passado-presente das relações raciais.

Nenhum segredo – e se ela não revelasse no palco, antes da exibição de sábado (16) no Cine Brasília, esta coprodução Brasil-Portugal entregaria sem problemas seu argumento: um épico lento e pausado ambientado no início do século 19 (1821, mais precisamente) na região de Diamantina, Minas Gerais. Na fazenda de Antonio, tropeiro e mercador de escravos, vive com sua família e uma comunidade de negros, nativos e trazidos da África. A história começa com a morte da mulher e do primogênito dele, durante o parto. Para afastar a solidão – a mãe senil mora com ele –, Antonio se casa com Beatriz, a sobrinha de apenas 12 anos. Enquanto ela não menstrua, o marido se ocupa sexualmente de uma negra, Feliciana, entre as viagens que faz para abastecer a casa de gêneros e comprar novos escravos. Mas evidentemente as coisas se encaminham para uma tragédia que, afinal, está na gênese de nossa miscigenada ancestralidade.
Fotografado em potente embora quase ascético preto e branco, "Vazante" é um exercício raro de fidelidade histórica. Daniela Thomas se cercou de historiadores e experts tribais para reproduzir como eram hábitos e costumes daquele ambiente. Isto incluiu um grupo de não-atores que são os reais descendentes dos escravos que habitam a região. Há evidentemente uma obsessão com a verossimilhança histórica, que encontrou ainda no iluminador peruano Inti Briones um colaborador inspirado. A tragédia que se constrói quase em câmera lenta evolui de forma supreendentemente orgânica, com elenco afiadíssimo. O que também interessou muito à roteirista-diretora, além da questão racial, foi o viés que coloca no epicentro a discussão de gêneros. Cabe à jovem esposa Beatriz a última transgressão, revertendo o quadro da casa grande e senzala e provocando repentinas e terríveis consequências. O final sombrio e irônico revela os pecados de uma nação, mas também significa as maneiras pelas quais o Brasil seria para sempre e inexoravelmente alterado por eles no futuro.

O jornalista viajou a convite da organização do festival.