A nostalgia de Havana, com seus prédios e carros dos anos 50, faz parte do imaginário cultural do país que resistiu ao embargo econômico como um território de cores explosivas
A nostalgia de Havana, com seus prédios e carros dos anos 50, faz parte do imaginário cultural do país que resistiu ao embargo econômico como um território de cores explosivas | Foto: Shutterstock



A impressão sempre foi romântica: carrões dos anos 50 caindo aos pedaços, artistas - exilados ou não - fazendo o que há de melhor em matéria de música e dança, o povo ostentando cartazes pró-revolução, o país congelado no tempo como se o comunismo fosse uma técnica de slow motion, além de tudo.
As fotografias de um profissional icônico de Cuba, Mario Diaz – que trabalhou durante anos no Ministério da Cultura -, dão a medida do fetiche em que se transformou a ilha, depois da revolução, vista pelos olhos dos simpatizantes: pessoas simples com posteres de Che Guevara, um músico carregando um violoncelo na praça, crianças felizes sorrindo com dentes bem tratados, os velhos idem.
Fora as conquistas inegáveis em matéria de saúde, cultura e educação, o outro lado da bandeira que tremula ao sol causticante do Caribe não carrega memórias tão ternas. A célebre frase de Che Guevara: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás" provou-se em muitos momentos apenas como frase de efeito, alguns até mesmo afirmam que ele nunca disse isso. A realidade sempre foi mais dura que a ficção.

Artistas e atletas cubanos pediram asilo político em inúmeras ocasiões por não aguentarem a mão de ferro do governo comandado por Fidel Castro até 2008, quando ele passou o poder a seu irmão Raul, mantendo-se entre as "medidas de segurança da ilha" algumas coisas que soam absurdas nos séculos 20 e 21: os cubanos foram proibidos de acessar internet em suas casas ou celulares; construir embarcações turísticas; contratar serviço de TV a cabo; matar um boi (a carne dos rebanhos é reservada aos turistas); fundar partidos políticos e, sobretudo, manifestar-se. Manifestação mesmo só para os longos discursos de Fidel que antes da revolução chegou a falar durante cinco horas, em 1953, para dizer que "a história o absolveria." Algo a se constatar depois de sua morte, no último dia 25, e evidente pelo menos no cortejo fúnebre que reuniu cerca de 2 milhões de cubanos na semana passada em todo país.

Orquestra do Buena Vista Social Club rodou o mundo fazendo apresentações depois do resgate musical nos anos 90
Orquestra do Buena Vista Social Club rodou o mundo fazendo apresentações depois do resgate musical nos anos 90 | Foto: Shutterstock



RESISTÊNCIAS E DESISTÊNCIAS
Para além da política, sobra na ilha – que restabeleceu relações diplomáticas com os EUA em 2015 - uma aura que atravessa o tempo, antes e depois da revolução, antes e depois de Fidel. A cultura cubana brilha como aquela estrela solitária num dos lados de sua bandeira enfrentando as resistências e as dissidências em forma de literatura, música, artes plásticas, cinema e dança. O escritor José Lezama Lima (1910-1976) figura entre os autores mais influentes da literatura latino-americana. Autor do romance barroco "Paradiso", dos livros de poemas "Muerte de Narciso" e "Aventuras Sigilosas", entre outros, enfrentou a discriminação do regime de Fidel Castro em sua própria terra por ser homossexual.

Outro teimoso da literatura cubana é Pedro Juan Gutiérrez (1950. Considerado um dos criadores mais talentosos da nova narrativa da ilha, estreou em 1998 com "Trilogia Suja de Havana". Crítico cáustico do regime de Castro, foi o porta-voz da grande crise cubana nos anos 1990. Sem nunca baixar a guarda, escreveu também "Fabián e o Caos", seu livro mais recente (2016), onde narra a perseguição aos gays em Cuba e, especialmente, ao seu amigo Fabián - tímido, pianista e homossexual - que acabou se suicidando por não aguentar as pressões do regime. Apesar da repressão – Gutiérrez chegou a trabalhar numa fábrica de enlatados destinada aos "párias de Cuba" - sua postura sempre foi combativa e uma frase sintetiza sua escrita: "Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver". Sua "arte irritada", diga-se de passagem, é de um talento imensurável.

Banda Quimbará: jovem herdeira da tradição musical cubana, apresenta-se em shows para "bailar y guarachar"
Banda Quimbará: jovem herdeira da tradição musical cubana, apresenta-se em shows para "bailar y guarachar" | Foto: Paulo Rapoport/ Divulgação



RITMOS EXPLODEM FEITO GRANADA
Além da literatura, Cuba também é música. Uma referência marcante é o Buena Vista Social Club que ficou mundialmente famoso, nos anos 90, quando o produtor norte-americano Ry Cooder reuniu um naipe dos melhores músicos que tocavam nas casas noturnas nos anos 50, em Havana, e com eles trouxe de volta o ritmo contagiante das salsas, rumbas e boleros.
Após a revolução, em 1959, as casas de shows foram fechadas em Cuba – incluindo o clube chamado Buena Vista - a festa e a diversão foram proibidas, assim como os jogos. Aquilo que um dia se configurou como "um cabaré dos norte-americanos", segundo os críticos do capitalismo, foi condenado ao ostracismo e muitos músicos deixaram sua arte, indo trabalhar nas plantações de cana ou de tabaco.
Em 1996, o coletivo Buena Vista foi resgatado por Cooder, entre eles estavam artistas como Manuel "Puntillita" Licea, Compay Segundo,Rubén González,Ibrahim Ferrer, Pío Leyva, Anga Díaz e Omara Portuondo. 40 anos após o fechamento do clube, o grupo foi para as telas dos cinemas num documentário inesquecível dirigido por Win Wenders, no qual a ilha congelada no tempo reaparece com suas cores,automóveis obsoletos e o talento indelével de seus artistas, preservado acima dos regimes de direita ou de esquerda, algo assim como uma estrela musical que tremula muito além das bandeiras.
Depois da reestreia, aos poucos o "club" foi perdendo seus membros, afinal, quando foram redescobertos por Cooder já eram considerados "superavôs", com 70 ou 80 anos. Mas entre suas glórias figuram um Oscar de Melhor Documentário, apresentações no Carnegie Hall, em Nova York, uma visita à Casa Branca onde tocaram para Obama, em 2015. O Bueno Vista Social Club deixou memórias e herdeiros não só em Cuba como no mundo todo.
O percussionista Thales Othón, brasileiro filho de cubano, faz parte da banda Quimbará que se apresenta em São Paulo em vários espaços como Mundo Pensante, Memorial da América Latina, Armazém Cultural, Copas Terraço Bar, Fundação Emma Klabin e outros. Aos 25 anos, ele se dedica aos ritmos latino-americanos, dando continuidade à tradição cultural: "A banda aproxima universos, mesclando ritmos, sabores e culturas num show para 'bailar y guarachar'. O grupo toca desde cumbias colombianas e salsas porto-riquenhas até ritmos cubanos tradicionais, trazendo um olhar peculiar sobre a música caribenha que ultrapassa fronteiras em arranjos dançantes feitos exclusivamente para esta formação", diz.
Desde fevereiro, a Quimbará é banda residente e curadora da festa Noche Latina, feita em parceria com a casa de shows Mundo Pensante, o evento acontece toda última sexta-feira do mês, com ótima receptividade do público. "No show, estão presentes músicas do repertório de Hector Lavoe/Willie Colon, Orchestra Harlow, Poncho Sanchez, Conjunto Chappottín, Benny Moré, Eliades Ochoa, Gabriel Romero, Leonor Gonzalez Mina, Lucho Bermúdez, Los Corraleros de Majagual, entre outros artistas" - diz Thales, citando muitos compositores dos anos 60 e 70. A banda é formada por Daniel Baraúna (voz/guiro/maracas/guacharaca), Eduardo Espasande "Cubano" (congas), Thales Othón (voz/bongô/campana), Pedro Guimarães (voz/piano), Kiko Woiski (contrabaixo), Gustavo Benedetti (sax tenor), Natan Oliveira (trompete) e Fábio Carrilho (guitarra/ violão 12 cordas).
Esse revival de músicas caribenhas salta de décadas passadas para a atualidade, na reconquista de um espaço que, no fundo, nunca foi perdido,como um desses brinquedos que pulam das caixas surpreendendo pela magia inusitada. A impressão é que a arte de Cuba sempre foi revolucionária pelo fato de se instalar por contágio, como uma febre que não nos deixa ficar parados num salão de dança ou quando debruçados sobre os livros de Pedro Juan Gutierrez.
Some-se a isso o vigor de sua dança – do Ballet Nacional de Cuba aos ritmos populares que se tornaram referência nos cabarés de 1940 – e teremos um amostragem do vigor injetado na cultura com fortes influências africanas, hispânicas e francesas. Uma mistura explosiva como os livros de Pedro Juan Gutiérrez que nunca fez concessão a regimes, preferindo uma literatura que mira o coração para atirar com ímpeto revolucionário quando diz: "É preciso estar disposto a se esfolar. Você se esfola, tira a pele, fica em carne viva, e então se atira no despenhadeiro do romance até o fundo do precipício. Se batendo, se ralando e quebrando os ossos contra as pedras. É o único jeito. Quem não se atrever a fazer assim é melhor deixar o lápis e o papel sobre a mesa e se dedicar a vender tomates ou entrar para o ramo imobiliário."

Neste ponto, a gente fica pensando nos tomates que vendeu na vida e passa a desejar a ilha, mesmo depois de Fidel, como um ideal de conquista, incluindo a conquista artística de um povo que canta e dança como quem tem uma granada nas mãos e nos pés fazendo, incessantemente, a outra revolução.

Imagem ilustrativa da imagem A outra revolução