Tony Hara: "Cada um desses pensadores tem um brilho próprio, procurei reunir essas grandezas numa constelação, que me serviu como o desenho de um tipo de inteligência, de uma forma de saber"
Tony Hara: "Cada um desses pensadores tem um brilho próprio, procurei reunir essas grandezas numa constelação, que me serviu como o desenho de um tipo de inteligência, de uma forma de saber" | Foto: Fábio Alcover



Converter a vida em um meio de conhecimento não é tarefa fácil. Apesar de todos os tipos de empecilhos, alguns homens apostavam tudo nessa conversão. Homens que apostaram na criação de novas formas de existência.
Em seu novo livro, "Saber Noturno – Uma Antologia de Vidas Errantes", o jornalista e historiador londrinense Tony Hara analisa a vida e a obra de alguns desses homens como Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin, Charles Baudelaire, Cruz e Sousa, João do Rio e Paulo Leminski.
Para Tony Hara, os pensadores e escritores reunidos na obra representam "uma visão ébria da vida no momento em que um fluxo de forças sóbrias agiu no sentido de domesticar o homem e organizar a sociedade de acordo com as regras consideradas racionais".
Publicado pela editora Unicamp, o livro será lançado em Londrina na próxima terça-feira, dia 31 de outubro, às 19h, no Sesc Cadeião. Na ocasião Tony Hara também profere a palestra "Da Arte de Viver na Filosofia de F. Nietzsche e M. Foucault".
A seguir, o autor fala sobre "Saber Noturno" e a prática do pensar radicalmente.

Imagem ilustrativa da imagem A embriaguez do pensamento



No livro você escreve sobre como pensadores noturnos refletem a embriaguez da vida. Como seria esse saber noturno?
Todas as noites quando vamos dormir, quando nos entregamos aos sonhos, experimentamos um tipo de sabedoria, uma forma de compreensão da vida que levamos, muito diferente daquela que nos guia quando estamos despertos. A luz diurna da razão quer esconjurar nossos medos e demônios, controlar os acasos da vida, atribuir um sentido, um por que, para todos os mistérios de uma existência, coletiva ou individual. Chamei de pensadores noturnos, poetas e filósofos que experimentaram os limites dessa razão diurna. Artistas do pensamento que atravessaram o lado noturno da vida, iluminado pela dor, pelo sofrer, pelo desprezo, pelo mal, e chegaram do outro lado, não difamando ou maldizendo a vida. Ao contrário, ao final da jornada eles evocaram novas auroras, novas possibilidades de viver neste mundo imperfeito. Essa postura intelectual, corajosa e lúcida, tem a ver com a ebriedade, no sentido de uma suspensão temporária da razão e da afirmação de uma pulsão de vida, que cria um saber alegre, não ressentido, apesar de tudo e, mesmo depois de tudo.

"Saber Noturno" aborda vida e obra de pensadores e escritores como Nietzsche, Benjamin, Baudelaire, Cruz e Sousa, João do Rio e Leminski. O que esses autores possuem em comum?
Cada um desses pensadores tem um brilho próprio, único, singular, como as estrelas cravadas no céu. Procurei reunir essas grandezas numa constelação, que me serviu como o desenho de um tipo de inteligência, de uma forma de saber, e também como um norte, um rumo, um caminho para o meu próprio pensamento. Não me dediquei muito, nessa pesquisa, ao que eles tinham em comum. Diria agora que se trata de algo ligado à intensidade, à vida intensa. A busca do máximo de força da alma nas lutas culturais e existenciais que travaram. Não creio ser uma coincidência o fato de nenhum deles chegar à casa dos 50 anos. Além disso, são pensadores que, como se diz, escreveram suas obras com sangue. Vida e obra, para eles, são uma coisa só. Algo que admiro muito.

Imagem ilustrativa da imagem A embriaguez do pensamento



Você defende a ideia de que pensar significa pensar radicalmente. O que significa pensar radicalmente nos dias atuais?
Gosto muito daqueles versos de Fernando Pessoa: "Procuro despir-me do que aprendi. / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram." Pensar radicalmente, aos meus sentidos, tem a ver com a autoanálise, com a reflexão sobre o nosso próprio modo de pensar e avaliar as cenas do mundo. Muitas vezes, usamos lentes que não são as nossas, que não refletem a nossa experiência no mundo. São lentes que foram lapidadas e impostas pela família, escola, mídia, instituições de poder. Pensar é se desvencilhar, tanto quanto possível, de uma forma de saber e de ver o mundo completamente descolada de nosso desejo, experiência e temperamento. Um saber neutro, apático, utilitário – efeito da razão diurna. Pensar radicalmente, para mim, é esquecer o que ensinaram a fim de tornar-se o que se é. Pensar com a própria cabeça, caminhar com os próprios pés. Cada um de nós é um milagre irrepetível, e é um desperdício de energias criativas e criadoras esse processo de transformação da multiplicidade que somos, em algo uniforme e obediente às regras e conceitos que há muito tempo deixaram de fazer sentido no mundo em que vivemos.

Parece que vivemos num mundo em que não há mais criação de pensamento, apenas reprodução de pensamento. Como o pensar radicalmente pode auxiliar na construção de um mundo melhor?
Ao reunir esses pensadores noturnos numa constelação, eu percebi o quanto é difícil, árduo, doloroso afirmar uma relação pessoal com o mundo, afirmar uma visão de mundo que até então não existia. Poemas de Baudelaire foram censurados pelo Estado, a tese de doutorado de Benjamin foi reprovada, Nietzsche adoeceu gravemente por não suportar a rotina irrefletida da vida universitária e depois viveu uma vida errante e modesta como Benjamin. Cruz e Sousa, poeta negro e pobre, enterrou seus filhos, viu a mulher enlouquecer, e de noite, chorando, escrevia: "O ser que é ser transforma tudo em flores... / E para ironizar as próprias dores / canta por entre as águas do Dilúvio!". Essa constelação me diz que criar não é fácil, cobra o seu preço, mas, por outro lado, é a atividade humana mais bela que existe, porque nos faz saltar da mesmice, da reprodução incessante de pensamentos já conhecidos e esvaziados de seu potencial transformador. Leminski dizia que a poesia deveria alargar a fronteira do expressável. Nietzsche dizia que sua tarefa filosófica estava ligada à invenção de novas possibilidades de vida, aquém ou além do niilismo, do ressentimento, da vontade de vingança. Há um processo de apequenamento do mundo, do potencial criador do homem nesse momento em que vivemos. Por isso acho necessário lembrar essas figuras transbordantes, que também enfrentaram um mundo de pensamentos estreitos e mesquinhos. No rastro da luta que travaram nós podemos reconhecer novos sentidos e dimensões daquilo que chamamos liberdade. Não acredito num mundo melhor sem liberdade de pensamento, sem liberdade de criação.

Charles Baudelaire,  Friedrich Nietzsche e João do Rio estão entre os autores que formam a constelação analisada no livro ‘Saber Noturno - Uma Antologia de Vidas Errantes’ de Tony Hara
Charles Baudelaire, Friedrich Nietzsche e João do Rio estão entre os autores que formam a constelação analisada no livro ‘Saber Noturno - Uma Antologia de Vidas Errantes’ de Tony Hara



No lançamento do livro haverá a palestra "Da Arte de Viver na Filosofia de Nietzsche e Foucault". O que você abordará em sua fala?
O tema da conversa está ligado a minha atual pesquisa de pós-doutorado realizada na Unicamp, que, no fundo, é um desdobramento do "Saber Noturno". Sinto um tédio muito grande ao falar sobre coisas que já escrevi, vivi e pensei, por isso escolhi falar sobre essa nova investigação, que tem como problema a compreensão de Nietzsche e de Foucault das antigas lições dos filósofos gregos que praticavam a filosofia como modo de vida, como governo de si mesmo, como transformação do ‘ethos’ do sujeito, isto é, do seu modo de ser, pensar e agir. Creio que a transformação de uma sociedade, de uma cidade, passa, primeiramente, pela transformação das pessoas, dos indivíduos. Daí o meu interesse pelo pensamento de Nietzsche e de Foucault que, assim como os gregos, uma vez se perguntaram: como é que se constitui um sujeito ético? Como é que se forma um espírito livre?

Imagem ilustrativa da imagem A embriaguez do pensamento



Serviço:
"Saber Noturno – Uma Antologia de Vidas Errantes"
Autor – Tony Hara
Editora – Unicamp
Páginas – 264
Quanto – R$ 40

Lançamento:
Data: Terça-feira (31)
Horário: às 19h
Local: Sesc Cadeião Cultural (Rua Sergipe, 52)

[left]Fragmento

É possível dizer que tais pensadores noturnos foram beber lá onde a razão instrumental não poderia ir, por causa de sua subjetividade, de sua neutralidade, de todo seu ascetismo. Esses pensadores-artistas, ao contrário dos "melhoradores da humanidade", não anunciaram um futuro luminoso para a humanidade, muito menos um paraíso celeste que aguardaria a chegada da humanidade sofrida. Anunciaram à beira do abismo, talvez, tocados pelos dedos trêmulos da vertigem e do delírio, que este mundo em que vivemos é o único que temos – e, portanto, é o melhor dos mundos, apesar da dor, da desgraça, da escuridão mais profunda; apesar de tudo. E é neste mundo, encantador e terrível ao mesmo tempo, que devemos criar, inventar novas formas de viver, de amar e de se apaixonar pela vida."[/left]