William Faulkner: ‘O Som e a Fúria’ é um romance de linguagem, no qual a forma narrativa faz parte do conteúdo
William Faulkner: ‘O Som e a Fúria’ é um romance de linguagem, no qual a forma narrativa faz parte do conteúdo | Foto: Imagens: Reprodução



No final de 1928, após ter seu terceiro romance recusado por diversas editoras, William Faulkner caiu em depressão. Isolou-se em casa e começou escrever um novo livro desprezando a necessidade de publicação. Não tinha nenhum plano para a obra, acreditava que a história seria desenvolvida com o próprio desenrolar da narrativa: "Quando comecei o livro, não tinha nenhum plano. Eu nem sequer estava escrevendo um livro. De repente, parecia que uma porta se havia fechado, em silêncio e para sempre, entre mim e o endereço dos editores, e eu disse a mim mesmo: Agora posso escrever. Agora simplesmente posso escrever."
Desse processo nasceu, em 1929, o romance "O Som e a Fúria". Obra mais radical e complexa do escritor norte-americano, ela transforma o tempo num personagem sombrio e exímio construtor de labirintos. Uma nova edição do livro acaba de chegar às livrarias pela editora Companhia das Letras

A obra narra o processo de decadência e extinção de uma tradicional família da região sul dos Estados Unidos numa época em que as feridas deixadas pela escravidão ainda estavam em carne viva. A família é formada pelo casal Jason e Caroline, e pelos filhos Maury, Quentin, Candace e Jason.
O romance está estruturado em quatro partes. Cada uma delas apresentada a partir do ponto de vista de um narrador diferente. A estrutura sugere tratar-se de quatro ângulos de mesmo um acontecimento, onde cada narrador insere informações complementares construindo uma complexa teia. Cada um dos quatro ângulos segue linguagem própria de acordo com as inquietações dos narradores.
A primeira parte é narrada pelo filho Maury, um deficiente mental que só se expressa através do choro. O texto apresenta a visão de um garoto de três anos vivendo no corpo de um homem de 33 anos. Capaz de desnortear o leitor, a narrativa oferece fragmentos de acontecimentos e sensações sem nenhuma necessidade de coerência. O próprio título do romance remete à frase de William Shakespeare presente em "Macbeth": "A vida é uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e sem significado algum."
A segunda parte é narrada por outro filho, Quentin. Retrata os pensamentos de Quentin durante seu último dia de vida, pouco antes de cometer suicídio. Fazendo uso da técnica denominada fluxo de consciência, Faulkner retrata o nó mental do personagem de maneira delirante.
A terceira parte é narrada por Jason, o filho que assume o controle da família após a morte do pai, do irmão e do desaparecimento da irmã. Seu empenho está em reprimir a sexualidade das mulheres da família e maldizer os negros.
A quarta e última parte é apresentada por um narrador externo, de fora do núcleo familiar, retratando o ápice da desintegração da família. A atenção repousa sobre figura de Dazier, uma negra que trabalhou a vida toda como cozinheira da família. Talvez a única personagem com real compreensão de toda a tragédia.
"O Som e a Fúria" é um romance de linguagem, no qual a forma narrativa faz parte do próprio conteúdo narrado. A linguagem desenvolvida por William Faulkner (1897 - 1962) parte de uma aparente desordem para chegar a uma aparente ordem. Mas a coisa não é tão simples. Isso porque a ordem final se revela muito mais desordenada e desesperadora que a própria desordem inicial.
"O Som e a Fúria" também é um romance sobre o tempo. A ideia apresentada por William Faulkner, ganhador do Nobel de Literatura de 1949, é que o tempo não seria aquilo que acontece naquilo que chamamos de mundo real. O tempo seria aquilo que acontece dentro da cabeça de cada homem, uma percepção individual e intransferível do próprio tempo. Assim, acreditar que as pessoas vivem num único tempo, na clássica noção de passado e presente, não passaria de um grande equívoco.

Serviço:
"O Som e a Fúria"
Autor – William Faulkner
Editora – Companhia das Letras
Tradução – Paulo Henriques Britto
Posfácios – Jean-Paul Sartre e Paulo Henriques Britto
Páginas – 376
Quanto – R$ 59,90 e R$ 39,90 (ebook)

Imagem ilustrativa da imagem A autópsia do tempo



[left]Fragmento:

(...) ela apertou minha mão contra o peito dela o coração batendo forte
eu virei-me e segurei-lhe braço
Candy você tem ódio dele não tem
ela levou minha mão até a garganta dela o coração dela também estava martelando ali
ela levantou o rosto para o céu tão baixo que todos os cheiros e sons da noite pareciam ter se amontoado ali como se dentro de uma tenda frouxa especialmente a madressilva o cheiro tinha penetrado minha respiração estava no rosto na garganta dela como tinta o sangue dela batia contra a minha mão eu estava apoiado no outro braço ele começou a se contrair e tremer e eu tive de respirar fundo para conseguir esvaziar os pulmões com toda aquela madressilva espessa e cinzenta tenho ódio dele sim por ele eu morria já morri por ele eu morro várias vezes sempre que isso acontece
quando levantei a mão ainda sentia gravetos e grama entrecruzados ardendo na minha palma (...)

(Fragmento de "O Som e a Fúria", de William Faulkner)[/left]