Imagem ilustrativa da imagem ALERTA - Denúncias de violência sexual jogam luz sobre lado obscuro do esporte
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O ex-médico da seleção norte-americana de ginástica artística Larry Nassar está sendo processado após ser acusado de molestar mais de cem ginastas durante o período em que trabalhou na equipe. Entre as vítimas, estão McKayla Maroney, Aly Raisman e Gabby Douglas, campeãs olímpicas em Londres-2012. Nassar confessou dez condutas de crime sexual e o veredito deve ser anunciado nos próximos dias. A US Gymnastics, Federação Americana de Ginástica, também está sendo processada pelos pais de ex-ginastas.

Incluindo o caso de Nassar, o ano de 2017 foi um divisor de águas nos casos de assédio e abuso sexual pelo mundo. Atores, diretores e produtores de Hollywood foram expostos, denunciados e perderam trabalhos por conta de denúncias. No universo esportivo, dois outros casos também trouxeram à tona o problema. Primeiro, o jogador Robinho, ex-Santos e Atlético-MG, foi condenado em primeira instância pela Justiça italiana a nove anos de prisão por estupro coletivo que teria cometido em 2013, quando atuava pelo Milan. O outro caso é relacionado à Operação Luz na Infância, deflagrada em todo o Brasil e na qual foram presos 80 suspeitos de pedofilia, sendo vários destes crimes em escolinhas de futebol.

O assunto voltou à pauta recentemente, mas trata-se de uma discussão antiga. Em 2008, a nadadora Joanna Maranhão, que tem a melhor colocação de uma nadadora brasileira na história dos Jogos Olímpicos (quinto lugar nos 400m medley em Atenas-2004), relatou ter sofrido abuso de seu ex-treinador quando tinha apenas nove anos de idade. O caso revelado pela atleta levou a discussão para fora do mundo do esporte e chegou ao Congresso Nacional.

Em 2012, foi publicada no Diário Oficial a Lei nº 12.650, que ganhou o nome Lei Joanna Maranhão. A nova regulamentação mudou o tempo de prescrição dos crimes de pedofilia e abuso sexual contra menores de idade. Anteriormente, o prazo para a prescrição passava a contar a partir do momento que o crime era cometido. Após a validação da lei, isso só passa a ocorrer a partir do dia em que a vítima completa 18 anos.

A nova lei só nasceu após o treinador acusado por Joanna entrar com processo contra a nadadora em 2008 por calúnia e difamação, o que a motivou a escrever uma carta pública – que seria lida em juízo, já que a atleta se tornou ré – enquanto estava em treinamento fora do Brasil para a Olimpíada de Pequim.

"Quero dizer que o fato de ele ter me despido na cama da própria esposa e ter me bolinado enquanto eu chorava e pedia para parar ainda é um fato que me enoja e me dói, mas isso não me derrotou. Sou dependente de antidepressivo e apesar de tudo isso estou aqui hoje, mesmo que por meio de palavras, pronta para lutar por justiça. Porque, se o medo e a vergonha me calaram durante 12 anos, não me calam mais", dizia um dos trechos. O caso de Joanna ganhou repercussão, gerou debates e fez com que a relação treinador-atleta fosse vista de outra maneira, principalmente quando se é mulher.

Campanha prega fim dos abusos no futebol

Hoje, o sonho de se tornar jogador de futebol sempre começa por uma escolinha. Sempre há o primeiro treinador, a primeira pessoa de confiança, aquela a quem muitas vezes o pai confia a criança nos treinos. Após ser deflagrada a Operação Luz na Infância, que resultou na prisão de dezenas de suspeitos de pedofilia, incluindo diversos proprietários e treinadores de escolinhas, ressurgiu o debate: quais são as condições oferecidas e por quais situações passam atletas em formação?

"Eu joguei durante 20 anos. Em metade desse tempo, eu sofri algum tipo de assédio, que foi quando eu joguei por equipes menores, ficando em alojamento. Eu acompanhei isso, senti na pele, vi amigos sendo assediados também quando era mais novo. Tem jogador de seleção que já passou por isso, cara de clube grande, que jogou Copa do Mundo, não é caso isolado", afirma o ex-goleiro Alê Montrimas, com passagens por Portuguesa, Bragantino e futebol português.

O ex-atleta atualmente trabalha com o Sindicato dos Atletas de São Paulo em uma campanha chamada "Chega de Abuso no Futebol" e já ministrou palestras em mais de 40 clubes paulistas, além de Cruzeiro, Atlético-MG e América-MG em Belo Horizonte.

"Muitos clubes convidam a gente após terem conhecimento de abusos dentro do clube. Às vezes descobrem algum diretor, alguma pessoa lá de dentro, e precisam mandar o cara embora. Eles começam a pressionar com isso, dar consciência. Eu não recebo denúncia daquele momento, mas já me disseram coisas sérias que aconteceram antes nesses lugares. Hoje nós temos portas abertas em todos os clubes e recebemos convites em todo o Brasil", relata.

O Google disponibiliza um mapa com todos os crimes de abuso sexual cometidos no futebol brasileiro desde 2011, com atualização até dezembro de 2017. Para encontrar o mapa, basta fazer a pesquisa "o mapa do abuso sexual no futebol brasileiro". Lá estão registrados todos os casos, com data, cidade e descrição. No Paraná, são seis cidades com registros de crimes de abuso sexual contra jovens atletas: Paiçandu, Marechal Cândido Rondon, Campo Mourão, Santa Helena, Quatro Barras e Curitiba. Com a ampliação no número de denúncias, do debate e das descobertas nos últimos anos, campanhas como a do Sindicato dos Atletas-SP ganham força.

"É um trabalho pioneiro no futebol. No ano passado, fomos até Brasília para falar na Câmara dos Deputados, entramos em contato com a CBF. Ninguém toca nesse assunto, mas é muito mais normal do que qualquer um imagina. Todo atleta sofreu, vai sofrer ou ao menos já presenciou o assédio, o abuso, principalmente nas categorias de base", frisa Montrimas.

"Eu só não sofri mais porque tive a orientação dos meus pais desde sempre, eles sempre souberam o que acontecia comigo e isso é um conselho: tem que conversar mais, tem que saber o que acontece. Hoje em dia, é muito difícil essa proximidade, até porque esses atletas saem cada vez mais cedo de casa. A ideia é fazer algo parecido com o que os Estados Unidos estão fazendo, colocando isso em pauta, seguir em frente. Fomos no (programa da TV Globo) 'Esporte Espetacular' e foi muito importante, quero também ir a outros programas, não só de futebol, pois não é uma questão só esportiva, é um problema público. Os pais precisam saber o que acontece para saber lidar com isso", completa.

Psicólogo aborda sexismo e assédio

O psicólogo Rodrigo Falcão, mestre em psicologia do esporte pela Universidade Aberta da Catalunha e administrador do site Psicologia no Esporte, trata da vulnerabilidade nas categorias de base esportivas em um de seus textos. Nele, Falcão aborda dois tópicos principais sobre o tema: o sexismo e o assédio moral.

O primeiro trata do machismo sofrido pelas mulheres no Brasil, sobre os salários inferiores aos de homens que ocupam a mesma função – fato que se torna ainda mais impressionante em esportes de alto nível –, além do baixo número de treinadoras que estão à frente de equipes de grande porte, seja no masculino ou no feminino. "A prática de esportes pode ser um grande instrumento de empoderamento feminino. No inicio dos Jogos Olímpicos da era moderna, as mulheres eram proibidas de participar dos eventos esportivos e muitas foram as pioneiras que ao longo do tempo quebraram as barreiras e enfrentaram o status quo", afirma.

O outro ponto abordado é o assédio moral: o comportamento de mascarar atitudes desumanas com disciplina, a exigência brusca e a rigidez. Segundo Falcão, o assédio acaba se tornando de cunho sexual também por culpa da mídia. Ele cita matérias do tipo "eleja sua musa esportiva" ou que tratem de temas como "as curvas das atletas" ou "a celulite da tenista tal". O fato do desempenho esportivo ficar muitas vezes em segundo plano, enquanto são mais valorizadas a beleza e a sensualidade da mulher, contribui para esses problemas.