Joca Reiners Terron: novo livro se passa em clima de suspense para recriar fatos e reinventar memórias
Joca Reiners Terron: novo livro se passa em clima de suspense para recriar fatos e reinventar memórias | Foto: Isabel Santana Terron/Divulgação



O menino corre pelo pátio, brincando como louco durante o recreio da escola. Corre testando os limites do espaço. Durante a correria, num breve descuido, tromba contra um pilar de concreto. Bate a cabeça e cai de costas, desacordado. Quando acorda do coma, numa cama de hospital, percebe que onde havia tudo, agora existe nada. Não há mais memória, já que não se lembra de nem um pedaço de seu passado. Não há mais linguagem, já que perdeu a capacidade da fala.
Como se tivesse retornado ao limite zero do nascimento, o menino se vê imerso num imenso branco. Tomando remédios que alteram sua percepção e desprovido de memória, lhe resta apenas empreender uma nebulosa jornada: inventar seu próprio passado. A história desse garoto está em "Noite Dentro da Noite", novo romance do escritor Joca Reiners Terron. Lançado pela editora Companhia das Letras, o livro se revela a obra mais instigante do autor mato-grossense radicado em São Paulo.
Grande parte das personagens de "Noite Dentro da Noite" possuem vida dupla. Suas existências estão estruturadas em vidas refletidas em jogos de espelhos. Inundada por associações reais e imaginárias, a narrativa instaura uma sensação de suspense que se revela igualmente imersa num novo jogo de espelhos.
Por não possuir voz, nem memória, a história do menino é narrada através de um intermediário, um misterioso sujeito chamado Curt Meyer-Clason. Trata-se de uma figura real, histórica, especialista em vidas duplas. Era um comerciante alemão atuando no Brasil, mas também um espião nazista infiltrado no país durante a Segunda Guerra Mundial. Também foi o primeiro tradutor responsável por publicar em língua alemã autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Meyer-Clason apresenta a história do garoto ao próprio garoto ao mesmo tempo em que também a apresenta ao leitor. Apresenta a história da família do menino, que resguarda um grande segredo que será revelado nas últimas páginas. Tudo fazendo uso de meios nebulosos e sem linearidade.
Ao mesmo tempo em que recebe informações sobre o passado que desconhece completamente, o menino igualmente cria suas próprias lembranças fazendo uso da imaginação.
A proposta por Reiners Terron é fazer da autobiografia uma obra de ficção. A imaginação deve ocupar o lugar das lacunas, recriar os fatos, inventar memórias e reescrever lembranças. Ou seja, criar um personagem dentro do personagem: ser outro.
A essência de "Noite Dentro da Noite" está em promover o embate entre memória e imaginação. E nesse tipo de embate tudo indica que a imaginação possui as melhores armas. Memória e imaginação atravessam a Segunda Guerra, o nazismo, o governo Vargas, a Ditadura Militar, a Guerrilha do Araguaia, e geada negra do Norte do Paraná, tribos indígenas do Paraguai, a chácara de Hilda Hilst, um rádio que consegue captar as vozes dos mortos, um submarino nazista que encalha nos rios do pantanal, um líquen que se propaga na consciência das pessoas, etc e etc.
Esse líquen, chamado pelos indígenas de pyhareryepypepyhare, é uma espécie de organismo vegetal inteligente, também conhecido como planta-vampiro. Dotada de uma autonomia superior, é capaz de ocupar a consciência dos humanos e lá se propagar. Seu objetivo é tumultuar os pensamentos.Em "Noite Dentro da Noite", pyhareryepypepyhare é um personagem onipresente e onisciente de toda narrativa. Revela como a fragilidade da realidade pode ser substituída por elementos da imaginação ou elementos sobrenaturais.
Pelo excesso de associações, pela vastidão de caminhos abertos, a estrutura do romance abre a possibilidade de muitas pontas abertas ou desatadas. Um dos grandes méritos de Joca Reiners Terron está em fechar todas as pontas. Até as menos prováveis de acolher um nó. O nó sempre surge em algum momento da narrativa.
Além do embate entre memória e imaginação, "Noite Dentro da Noite" é uma obra desprovida de esperança. A fé no futuro é completamente inexistente. Quase um fantasma que provoca susto e repulsa. Quase um fantasma que oferece aquilo que ninguém consegue possuir: a memória sem imaginação.

Imagem ilustrativa da imagem O lado mais escuro dos olhos fechados
| Foto: Reprodução



Serviço:
"Noite Dentro da Noite"
Autor – Joca Reiners Terron
Editora – Companhia das Letras
Páginas – 468
Quanto – R$ 64,90 e R$ 39,90 (ebook)

Um menino contou uma história a outro no pátio da escola e o comentário do ouvinte é uma nova história. Inventamos histórias, pois a manhã da família não pode ser vazia. Se não lembramos de algo relevante, se a noite foi insone, inventa-se, preenche-se o silêncio com palavras, com notícias de longe ou reportagens daquilo que vai pelo inconsciente e que irrompe com o despertar, com o abrir dos olhos. É o espreguiçar da expressão, o retorno ao estado de linguagem, sujeitos e predicados escapando da escuridão da inexistência, conquistando uma voz, disse Curt Meyer-Clason. O que é contado por essa voz, seja vinda de lugares distante ou das profundezas do oceano, é sempre dita pelo eu, pela anciã por expressar aquilo que nos rói os intestinos, que nos dá mordidas no fígado, reminiscências intransferíveis, resoluções da personalidade, incongruências do espírito. É, em suma, repetição. Assim não se pode atingir a distância, é improvável que o escafandrista chegue ao fundo. O nômade não traz novidades de longe, só velharias do eu. O sedentário roubou o palco ideal para sua encenação criminosa: a mesa da casa. Criminosos sempre retornam ao local do crime, à mesa da família, em todo café da manhã. (Fragmento de "Noite Dentro da Noite", de Joca Reiners Terron)