Cristovão Tezza: o grande mérito do livro está em sua linguagem, sua estrutura narrativa
Cristovão Tezza: o grande mérito do livro está em sua linguagem, sua estrutura narrativa | Foto: Divulgação



Não é tarefa fácil inserir no universo da ficção a crise política, econômica e ideológica brasileira da atualidade. Os acontecimentos, e suas possíveis interpretações, se alteram com tanta velocidade que o ano passado já pode ser considerado paleológico.
Em seu novo romance, "A Tradutora", o escritor Cristovão Tezza mergulha nessa tentativa de inserção que caminha em direção ao anacronismo. O período histórico escolhido fica entre os preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil e a possibilidade da reeleição de Dilma para a presidência da república.
"A Tradutora" retrata a trajetória de Beatriz, uma mulher de 30 e poucos anos, residente em Curitiba. Trata-se de uma personagem recorrente na obra de Cristovão Tezza. Ela está presente no romance "Um Erro Emocional" (2010) e também volume de contos "Beatriz" (2011).
Beatriz vive um processo simbólico e quase esquizofrênico. Está tentando dar um fora no namorado Donetti (um escritor de tendência de esquerda) e, ao mesmo tempo, concluir o trabalho de tradução de um livro do catalão Xaveste (um filósofo de tendência conservadora).
Entre o jogo de forças antagônicas, Beatriz flerta com as duas, mas não escolhe nenhuma delas. Escolhe uma terceira: ganhar uma grana trabalhando como tradutora pessoal do alemão Erik, um funcionário do alto escalão de marketing da Fifa. Ele está em Curitiba, uma das cidades que pretende ser sede da Copa do Mundo de 2014, para avaliar o potencial mercadológico da cidade.
Para conceder complexidade ao romance, Tezza coloca o amor na lógica de Beatriz, não em seu coração. Ela está se desvencilhando do amor de Donetti, está abraçando o amor do gringo Erik e também percebendo que ama realmente um terceiro, Chaves, o editor do livro que está traduzindo. E tem mais, descobre é o amor da vida de um adolescente cheio de espinhas.
O grande mérito do livro está em sua linguagem, em sua estrutura narrativa. Cristovão Tezza cria vários planos narrativos simultâneos. O tempo dos fatos e o tempo da reflexão dos fatos mandam para o espaço o sentido cronológico da realidade e de sua percepção. Tudo assume a forma de um tempo mental. A narrativa é formada por pensamentos de Beatriz, vozes de personagens, fragmentos do livro que está traduzindo, dúvida de sua tradução, comentários de amigas e outras coisas mais. Tudo parece acontecer num único processo de fragmentação mental na tentativa de unificação ilusória.
O uso da simultaneidade da fragmentação pode deixar a impressão que o leitor está diante de uma narrativa enfadonha, repleto de fendas e interrupções. Um risco que Tezza assumiu correr. Sua proposta está em apresentar a personagem principal com todas as cisões e contradições do país dos últimos anos. Forças antagônicas que deixaram o Brasil dividido em dois pólos. Dois lados que podem significar aquilo que todos sabem e fingem não tolerar.

Serviço:
"A Tradutora"
Autor – Cristovão Tezza
Editora – Record
Páginas – 208
Quanto – R$ 42,90

(...) Ela lembrou o litoral, as cidades históricas, Paranaguá, Morretes, Antonina, a estrada de ferro, ‘mais de uma dezenas de túneis, a paisagem é linda’, o Pico do Marumbi, talvez com um toque demasiadamente escolar, que ele ouviu com atenção apenas cordial, fazendo sim com a cabeça mas claramente pensando em outra, ela imaginou que até a palavra ‘Brasil’ fez irromper a pergunta inesperada, de voz baixa, como quem tateia terreno minado que mistura futebol e pátria, ‘a presidente Dilma não é muito popular não?’ E antes que Beatriz se refizesse da surpresa, também ela tateando a resposta, insegura em achar algum ponto razoável entre a conveniência e a verdade (aqui sou uma secretária, ela estabeleceu como referência, ‘eu não estava ali como fiscal da ONU’, ela brincou com Bernadete, e uma frase antiga que ouviu voltou-lhe à cabeça, ‘nunca fale mal do Brasil para os estrangeiros porque eles não vão respeitar você’, mas a Dilma é o governo, não o país, ainda que). ‘Bem’, ele prosseguiu, sem esperar sua resposta, ‘as manifestações contra o governo, do ano passado, aquilo foi meio assustador, parece que esfriaram um pouco, não?’ Numa discussão política, assuma o tom acadêmico, para esfriar o caldo, disse Chaves no jantar da Figueira, defendendo-se de uma observação um tanto agressiva de Donetti sobre a corrupção da elite brasileira. (...) (Fragmento de "A Tradutora", de Cristovão Tezza)