Marco Cremasco: "O termo Guayrá traz consigo o significado emblemático de ‘aquele lugar resiste’. Essa mística de resistência permeia o livro"
Marco Cremasco: "O termo Guayrá traz consigo o significado emblemático de ‘aquele lugar resiste’. Essa mística de resistência permeia o livro" | Foto: Solange Cremasco/Divulgação


No início do século 17, boa parte da região que conhecemos hoje como Paraná era chamada de Guayrá, um lugar selvagem disputado entre unhas, dentes, armas e sangue. De um lado estavam os colonizadores espanhóis que lutavam por uma conexão com Oceano Atlântico. De outro lado estavam os padres portugueses determinados, a qualquer custo, em converter ao cristianismo as tribos nativas. No meio de tudo estavam os povos indígenas que desejavam apenas viver suas vidas como sempre viveram.
Em seu novo livro, "Guayrá", o escritor paranaense Marco Aurélio Cremasco retrata de maneira poética um tempo-espaço imerso em conflitos e disputas que envolviam cultura, economia, mitologia, religião e política. E claro, muito sanggua.
Através de uma apurada pesquisa, Cremasco não apenas trabalha com elementos históricos, mas incorpora na própria narrativa o universo mítico e linguístico tanto dos povos indígenas quanto do mundo bíblico.
Lançado pela editora Confraria do Vento, o romance histórico procura reconstituir, através da linguagem, o ambiente em que culturas completamente distintas estabeleceram contato e, consequentemente, conflito.
Nascido em Guaraci, Paraná, Marco Cremasco atua como professor de Engenharia Química na Unicamp. Um dos fundadores da revista de literatura Babel, é autor de cinco livros de poesia, além do romance "Santo Reis da Luz Divina" (Record, 2004) e do volume de contos "Histórias Prováveis" (Record, 2007).
A seguir, Marco Cremasco fala sobre o livro e sobre a riqueza histórica que ainda permanece obscura na memória do Paraná.


Que região é essa nomeada Guayrá? Qual sua história e sua mística?
A região do Guayrá, em linhas gerais, está incrustada na geografia paranaense, delimitada por seus grandes rios: Paranapanema ao norte; Paraná no oeste; Tibagi a leste; um pedaço do Iguaçu no sul; Ivaí e o Piquiri a sudeste e sudoeste. Ao longo das margens desses rios, ou de suas proximidades, foram instaladas reduções jesuíticas e vilas espanholas, depois destruídas por moradores da Capitania de São Vicente. A história do Guayrá remonta à descrição de Díaz de Guzmán (1612), que associou Guayrá ao nome de um cacique, cuja influência estendia-se pelo rio Paraná. A resistência imposta por tal cacique a toda sorte de invasão foi continuada por outros líderes, tais como Atyguajé e Guyrawerá. O termo Guayrá traz consigo o significado emblemático de "aquele lugar resiste". Essa mística de resistência permeia o livro.

O romance trafega entre a história do Brasil, a mitologia indígena e a ficção. Onde termina a história, a mitologia, e começa a ficção?
Penso que a mitologia é um modo de expressar a visão de mundo, contendo, dessa maneira, uma verdade inerente à compreensão desse mundo. A ficção cria um mundo próprio independentemente se este é verdadeiro ou não. Entendo o livro como ficção histórica uma vez que a História canônica, ainda que sirva de base para o enredo, é questionada para permitir olhares distintos e conflitantes, inclusive pelo amálgama entre ficção e mitologia, de forma a tornar a História personagem de si própria.

O livro retrata um infindável conflito entre as reduções religiosas e a cultura dos povos indígenas. Até que ponto a vida natural dos nativos foi comprometida pelos objetivos da Igreja e do Império?
Com a chegada dos jesuítas apareceram elementos estranhos à cultura local, como conceitos sobre céu e inferno, estabelecimento da monogamia e de vestimentas, forçando os indivíduos a reorganizarem o seu espaço cultural. Já os espanhóis, a que tudo indica, intencionavam estender os seus domínios até a costa do Atlântico. A instalação das reduções, creio, tinha o compromisso religioso, político, como também econômico, porque os nativos trabalhavam, em regime alheio ao seu cotidiano, para compensar as taxas ao reino. Nota-se, portanto, que uma cultura genuína foi totalmente comprometida em nome de certa aculturação por meio da religião e da política.

"Guayrá" pode ser descrito como o retrato de um conflito sem solução. Você acha que esse conflito ainda está presente no Brasil atual?
Tendo em vista o núcleo jesuítico na obra, a Bíblia está presente no "Guayrá" desde a Criação, baseada na tradição dos Apapocuva e dos Mbyá (troncos Guarani), até o seu final, em que existe o devaneio de um padre, inspirado no Apocalipse de João, diante da destruição iminente das reduções. Já próximo ao desfecho da ficção, há um personagem que diz: "Não há nada de novo sob o sol, carijó!". Utilizei essa passagem do Eclesiastes para a epígrafe do romance, pois o conflito a que você se refere faz parte da natureza humana, independentemente do tempo e do lugar. Sim, o conflito continua no Brasil e precisamos, mais do que nunca, aprimorar o senso de justiça e de tolerância, bem como ter voz ativa contra o preconceito e a discriminação.

Em "Guayrá" há a presença de uma infinidade de personagens de vários universos. A estrutura narrativa realiza uma viagem por um mundo que, historicamente, não existe mais. Ao mesmo tempo, o narrador não utiliza nenhuma interferência do mundo contemporâneo. Por que essa opção?
Uma de minhas preocupações quando da feitura do livro foi o de não datar acontecimentos. Em vez dos dias, preferi escrever o nome do santo ao qual determinado dia é consagrado. Considerando que existem vários troncos do guarani, optei por não adotar somente um padrão para grafar termos associados a esse idioma. Talvez isto possa traduzir a atmosfera de atemporalidade e de distanciamento de quem escreve, enquanto observador de um tempo que não existe. Contudo, Guayrá também pode significar "aquele tempo resiste" e todo o meu distanciamento pode ser, quem sabe, um artifício para fazer parte do que ocorreu, mesmo depois de 400 anos.

Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - A alma perdida do Paraná
| Foto: Reprodução



Serviço:
"Guayrá"
Autor – Marco Aurélio Cremasco
Editora – Confraria do Vento
Páginas – 320
Quanto – R$ 59

Fragmento

Ka’aporá mora nos montes, Itawerá. É mais alto do que qualquer Avaré e tem mais pelos do que karajá. Fuma erva posta em crânio humano. Pita por caniço feito de dedo de gente. Devora tudo e deixa as tripas para os urubus. Às vezes, ele vira o Kurecu, um koxi que solta fogo pelas ventas. Quando quer, o Ka’aporá vira tronco ou bola peluda que voa por aí. Cuidado com as águas do Paranã, Itawerá! Nelas estão o Teiujaguareté e o Piranu. O Teiujaguareté é um lagarto com cara de jaguar. Come o que tiver pela frente e esconde-se no fundo do Paranã. Os padres trouxeram o Piranu, peixe com cabeça de anta, que nasceu de canoas despedaçadas no Jupiá de Yjara. O Piranu nada até o Pikyry para assustar o pueblo de Cidad Real. Nisso eu acredito. Falando besteiras novamente, Pedro? – interrompeu Montoya, acariciando a cabeça de Yvanhoty. É verdade, Sumé, é verdade.

(Fragmento de "Guayrá", de Marco Aurélio Cremasco)