Se para ser um clássico um dos requisitos é atingir a atemporalidade, podemos dizer que, em sua herança, Elis Regina ratifica o posto de figura histórica na música brasileira a cada dia. "O Brazil tá matando o Brasil" já anunciara a gaúcha em "Querelas do Brasil" de 1978. Bem, a prova mais recente de que em seus versos havia profecia é o novo suposto "emplasto Brás Cubas" da política econômica brasileira, a PEC 241.

Carinhosamente apelidada de PEC da Desigualdade, é o novo alvo da débil disputa bipolarizada empobrecedora que assola esse paciente quase terminal que chamamos de Brasil. De um lado temos os autodenominados "de direita", que a veem quase que como o retorno de Cristo; enquanto do outro os "de esquerda" a tratam da como o Apocalipse travestido em forma de lei. Fora desse FlaFlu (Tubarão x Maringá) me encontro na obrigação, como ambidestro de nascença, de destrinchar a verdade por trás da dita necessidade da medida e seus efeitos pelo menos em minha área de formação, a saúde.

Hoje, o investimento na Saúde tem porcentagem definida na arrecadação (13,2%), então quanto mais o governo ganha, mais investe. A PEC quer desvincular os gastos dessa área do orçamento e mantê-la reajustada apenas pela inflação (IPCA) nos próximos 20 anos. Independentemente do que o Brasil cresça, como economia ou população, o investimento na saúde continuará o mesmo valor efetivo de 2018 até 2036. Primeiramente cabe lembrar o quão subfinanciado é nosso sistema público de saúde, conquistado pelos brasileiros a duras penas. Em 2013, o investimento do governo federal foi de US$ 591 per capita, de 4 a 7 vezes menor do que o de países que têm sistema universal de saúde, como Reino Unido e França; mas também tão distante quanto de países que não têm um programa de saúde pública, sendo a metade do argentino (US$ 1.167) e um sétimo do americano (US$ 4.307).

Soma-se isso ao fato de que, devido a fatores como a adoção de novas tecnologias, a média da inflação da saúde chega a ser quase o dobro da oficial. Ou seja, mesmo que o Brasil se mantivesse imutável demograficamente, com ajuste exclusivo pelo IPCA conforme propõe a PEC, haveria uma progressiva degradação do serviço público. Acontece que, segundo o IBGE, a população brasileira crescerá 9% e dobrará o número de idosos em 20 anos; fato que exigirá um aumento real do valor destinado à saúde. Caso contrário, teremos uma aplicação per capita cada vez menor no SUS, o que implicará uma piora na oferta e na qualidade dos serviços.


Se a PEC estivesse em vigor na última década - sendo aplicado o mínimo previsto por ela -, o investimento em 2015 na saúde teria sido de R$ 65,2 bilhões quando, na realidade, foi de R$ 102,1 bilhões. E as estimativas para os próximos 20 anos que a PEC teoricamente abrangeria não são nem um pouco mais animadoras. Segundo o Ipea, a perda acumulada seria de R$ 743 bilhões. Não são apenas números, são mortes. Mortes as quais o Congresso e a Presidência da República condenam a milhares de brasileiros por falta de leitos, medicamentos e profissionais. Em troca de quê? Pela míope visão governista, uma suposta imagem teoricamente mais favorável ao investimento externo. O "Brazil" matando o Brasil.

Não são necessários mais de dois neurônios funcionais e o mínimo de empenho em informar-se para entender que o Brasil precisa urgentemente de ajuste e até mesmo um teto nos gastos públicos. O problema é que são imprescindíveis ao menos três para compreender que um prazo de 20 anos não existe em lugar algum - países nórdicos que adotam esse sistema o renovam, em média, de 4 em 4 anos no pacto eleitoral - e que saúde e educação não podem entrar nesse cálculo. Vale uma lida em David Stuckler, professor de política econômica e saúde pública na Universidade de Oxford, para entender o desastre de países que diminuíram seus investimentos nessas áreas em momentos de crise. "Em tempos difíceis nós não descartamos nossos melhores ideais, nós nos elevamos para encontrá-los" (Michele Obama).

RODRIGO ROSA GAMEIRO é estudante de Medicina na PUC-PR, campus Londrina

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