Caridade como justiça
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sábado, 16 de dezembro de 2017
Colocar-se no lugar dos outros é a essência do pensamento ético. Isso está resumido na Regra de Ouro: "Faça aos outros aquilo que quer que façam a você". Trata-se de uma regra universal, certamente a mais universal de todas, é encontrada repetidamente nos textos bíblicos, também no budismo, no confucionismo, no hinduísmo, no islamismo e no judaísmo.
Peter Singer, filosofo australiano, nos convida a refletir sobre o quanto estamos dispostos a sacrificar em prol da vida do outro, confrontando diretamente amor e egoísmo. Coloca-nos diante de situações incômodas, como: salvar uma criança de fome ou comprar uma camisa nova que não precisamos, comprar uma casa de praia ou ajudar a construir uma moradia digna para uma família desabrigada. O desconforto é inevitável e facilmente nos faz perceber a nossa pequenez e hipocrisia.
A tradição cristã coloca a fraternidade, ou seja, a vida irmanada, a acolhida aos mais necessitados, a integração incondicional de todos num mesmo corpo comum, como fundamento dos que se assumem como seguidores de Jesus. O próprio Jesus disse ao homem rico: "Se desejas ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres" (...) "é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus". Em outro momento louvou o bom samaritano, que saiu de seu caminho para ajudar um estranho. Ao falar sobre a salvação, exaltou aqueles que deram de comer aos que tinham fome, de beber aos que tinham sede e vestiram os que estavam nus. O Reino dos céus está condicionado a como tratamos os "menores entre todos". "No fim permanecem a fé, a esperança e a caridade, mas destes o maior é a caridade."
Há na Bíblia mais de 3.000 referencias à caridade, o que deveria fazer desta questão moral a centralidade de toda a mensagem. A palavra hebraica para a caridade é tzedakah (????), que quer dizer "justiça". A origem etimológica da palavra diz muito sobre o seu fundamento, que não está relacionado a um ato benevolente, uma concessão benfazeja, mas um dever de quem abraça a fé cristã.
Paulo em sua carta aos Corintios deixa claro: "Neste tempo presente, que vossa abundância supra a falta dos outros, para que também sua abundância supra vossa falta, e haja igualdade". Em Atos aos apóstolos, Lucas não deixa dúvidas sobre o ideal de sociedade idealizado por Jesus: "Os apóstolos vendiam todas as suas propriedades e bens e repartiam o dinheiro de acordo com a necessidade de cada um". É importante salientar, conforme as necessidades de cada um, não se fala em privilégios, mérito, superioridade ou qualquer escalonamento tão exaltado nos tempos atuais para tentar justificar e legitimar as desigualdades abissais e a pobreza crônica.
Tomás de Aquino, sábio medieval e um dos sustentáculos filosóficos dos primórdios dos cristianismo, escreveu que tudo o que tivermos em "superabundância isto é, acima e além do que satisfaz razoavelmente nossas próprias necessidades, é devido, por direito natural, aos pobres, para sustento deles". Também Ambrósio, um dos primeiros grandes doutores do cristianismo, deixou escrito: "O pão que reténs pertence aos famintos, as roupas que guardas, aos desnudos, e o dinheiro que enterras no solo é a redenção e a liberdade dos destituídos". Não se trata de caridade facultativa, mas dever de cada um de e direito dos despossuídos.
A nossa necessidade é inversamente proporcional à quantidade de amor que se carrega no coração e que se expressa pela concessão que se está disposto a assumir para aliviar a dor do outro e promover o bem-comum. Vale a profética e incômoda frase de dom Helder Câmera: "Quando dou comida aos pobres me chamam de santo, quando questiono as estruturas que produziram tamanha injustiça, me chamam (pejorativamente) de comunista".
LUÍS MIGUEL LUZIO DOS SANTOS é professor de Ética e Responsabilidade Social do departamento de Administração da UEL (Universidade Estadual de Londrina)
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