Imagem ilustrativa da imagem Lembranças engavetadas


Algum tempo depois que ela partiu e a casa ficou vazia, a vida incumbiu-me de arrumar os seus pertences. Havia anos que a gente não mexia naquelas gavetas porque não nos pertenciam. Enquanto ela vivesse as lembranças seriam dela, a sua identidade e história deveriam ser preservadas, nada de invasão. Era uma bagunça, sim, eram objetos sem sentido , misturas embaraçadas, relíquias sem valor, coisas que a gente não entendia porque eram remexidas, espalhadas e no fim, enfiadas novamente nas gavetas como se fosse um cofre de preciosidades.

Mas um dia aquela casa, aqueles móveis e aquelas coisas ficaram sem dono, sem valor, sem afeto. Como uma estranha, a princípio, eu comecei a organizar as gavetas. Costuma-se dizer que, quando organizamos gavetas e armários de nossa casa, organizamos nossa própria vida, queremos botar ordem, recomeçar, reparar os erros, aparar arestas, limpar e arrumar a alma, literalmente.

Mas não foi isso que aconteceu, obviamente por não serem as minhas gavetas com as minhas coisas, embora eu fizesse parte daquela história que ficara ali, sem dono, sem ninguém que se interessasse por ela, que gostasse, que desse valor como "seu". A cada gaveta que abria, e olhava, e remexia, ia tirando imagens do passado, cheias de significado, como se fosse um filme em preto e branco, enredo complicado mostrando uma viagem de idas e vindas, de cores e fumaças, de alegria e de tristeza. Cada objeto inusitado guardamos nas gavetas da nossa vida! Uma vela pela metade, linhas embaralhadas, tampinhas, cartões antigos, calendários marcando um tempo que não volta mais.

Aquele chaveiro estranho fez parte de uma coleção de chaveiros enganchados numa peneira enfeitando a sala; a foto recortada, separando alguém que perdera a importância. E aquele penteado, cruz credo, como se usava isso?

Vinham papéis amarelados com receitas trocadas na pressa entre amigas e levando o nome delas, só para lembrar. Bilhetinhos de crianças, alunos, com certeza, desenhos infantis, um pé de sapatinho de crochê, umas amostras de toalhinhas da mãe da mãe, pente faltando dentes, papéis de carta, tão em desuso que chega a ser estranho.

E as lembranças vão sendo tiradas do baú da saudade: santinhos quebrados, novenas, tercinhos aos montes, santinhos com orações, cartas de parentes, letra de música romântica escrita a mão, um cinzeiro. Fitinhas enrodilhadas de várias cores, retalhos de tecidos lembrando as roupas que usávamos.

Meu Deus, é um redemoinho de lembranças, preciso fechar a gaveta para respirar. Por que a gente acumula tantas lembranças?

No tempo presente não temos percepção do que é a vida, só depois que ela passa. Arrumar uma gaveta não é somente organizar, mas desconstruir uma vida inteira, é ver nos detalhes das coisas os detalhes da própria existência, o significado, o valor, não material, mas que deu impulso e moveu o nosso caminhar.

De vez em quando é bom a gente desengavetar lembranças, jogar fora as que nos fizeram sofrer, apreciar as que nos trouxeram alegria e, enquanto estamos vivos, trancá-las e seguir em frente.

Engavetado também, enroladinho num papel amarelado, certamente datilografado por uma máquina Olivetti, ainda encontrei, antes de fechar a gaveta, um bilhetinho que dizia: "Recordar é viver"!