Imagem ilustrativa da imagem Lucimara nunca viu o mar
| Foto: Ilustração: Marco Jacobsen



Ela tem 41 anos, teve poliomielite aos oito meses, acabou com os membros atrofiados, e hoje vive de doações que recebe no Calçadão de Londrina, em frente ao Banco do Brasil, onde fica todos os dias, há 20 anos, fazendo aquilo que pode para manter a si mesma e à mãe doente, diagnosticada com um coágulo no cérebro.
Seu nome é Lucimara Aparecida Diniz, a mulher que muitos londrinenses conhecem e que dias desses foi vítima de um blefe na rede social: postaram uma foto, como se fosse dela, sendo carregada por um homem numa praia. A história já foi desmentida, a pessoa da foto não é Lucimara que sentiu-se ofendida, mais que isso, humilhada, com o escândalo local criado a partir de uma imagem. A deficiente da foto não é Lucimara, mas se fosse, trata-se do direito de qualquer pessoa ir aonde quiser. Mas, neste caso, inventaram suas "férias à beira-mar" por maldade,para demonstrar que ela gasta o que recebe com diversão. Alguns seres humanos desqualificam-se quando contam mentiras e as redes sociais oferecem um amplo território de manipulação e fofoca.
Dia desses, passei pelo Calcadão e vi uma emissora de TV entrevistando Lucimara. Esperei alguns dias para encontrá-la mais tranquila, mas já havia decidido que ela seria personagem de uma crônica. Na última quinta-feira fui conversar com ela, apresentei-me como jornalista, e para minha surpresa fiquei sabendo o que os mentirosos não sabem: Lucimara nunca viu o mar. Aliás, só o viu nas fotografias, na televisão e, pasmem, ela sabe do mar porque leu os livros de José de Alencar – "Iracema" – e de Machado de Assis que, segundo ela, descreve num deles a praia de Copacabana.
Assim eu soube que aquela mulher franzina, deficiente física, conhecida por todos os que entram e saem da agência bancária, é uma leitora assídua. Ela me contou que já doou um livro de Jorge Amado para a Biblioteca Pública de Londrina, no qual também "viu o mar," e me descreveu uma passagem em que o autor cita o Elevador Lacerda, em Salvador.
O que Lucimara não sabia é que ela também inspirou um roteiro de cinema de um amigo saudoso, o jornalista Francelino França, já falecido, que escreveu um enredo no qual Lucimara, que fica no Calçadão, um dia é esquecida pela família na hora de voltar para casa. Na história, seu dia tem um final inusitado pelo esquecimento, mas eu nunca soube como o França faria o desfecho. Juntando realidade e ficção, ele sempre se interessou por personagens populares e informei à Lucimara que ela seria também personagem, como nos livros que lê. Seu olho brilhou quando soube.
Inspirada pelo enredo criado pelo meu amigo - que foi repórter de Cultura da FOLHA -, quis também conhecer a história pessoal daquela mulher que depende dos outros para chegar e sair do Calcadão todos os dias. Ela me contou que os motoristas de táxi da praça Marechal Floriano Peixoto a levam e trazem. "O seu Darci, o seu Hélio e os outros me dão um desconto nas corridas", informou, antes de responder que mora na rua Ouro Preto.
Ela me disse que sentiu-se humilhada com a história da internet: "Nunca tive nenhum namorado, nenhum homem ou mulher", justificou.
Então pedi licença para fotografá-la, ela ficou constrangida, só relaxou quando expliquei que o ilustrador Marco Jacobsen também faz desenhos a partir de fotos. Ela então sorriu, imaginando o que seria sua "caricatura." Na verdade, uma colagem.
Na saída, ainda falando de livros e autores, Lucimara me disse que "gostaria muito de ler Dante Alighieri". Exultei com o desejo dela e, de queixo caído, intimamente fiz uma promessa que ela só vai conhecer neste fim de semana, quando ler a FOLHA. Pode esperar, Lucimara, até o Natal vou entregar a você um exemplar de "A Divina Comédia". Tenho certeza que, na sua cadeirinha, você ficará feliz como quem vê o mar.

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